Opinião
Intervenção comunitária nas fases iniciais das doenças psicóticas
Tiago Santos
Assistente hospitalar de Psiquiatria do Dep. de Psiquiatria e Saúde Mental do CH do Baixo Vouga. Colaborador do Programa Nacional para a Saúde Mental. Secretário da AG da Secção do Primeiro Episódio Psicótico da SPPSM
As perturbações psicóticas representam o paradigma clássico das patologias psiquiátricas. O conceito de psicose pressupõe a incompreensibilidade do pensamento e perceção dos doentes, intraduzível através da nossa experiência comum. A expressão dos sintomas psicóticos e a dificuldade de adaptação dos doentes a um padrão de vida considerado normal completam o tantas vezes observado ciclo do estigma e exclusão social e familiar.
A ocorrência de um primeiro episódio psicótico corresponde a várias possibilidades diagnósticas, prognósticas e de tratamento. Tal como na fase inicial de processos mórbidos de patologias de outras áreas da Medicina, a evolução clínica, a gravidade e o impacto no funcionamento pessoal é função de vários fatores, nem todos passíveis de prevenção ou controlo através de estratégias terapêuticas.
A organização de uma intervenção precoce, capaz de identificar fatores de mau prognóstico, contornar obstáculos à acessibilidade aos serviços de saúde e construir um plano terapêutico com os doentes e as suas famílias é determinante no impacto que as patologias psicóticas podem representar na funcionalidade dos doentes e na sociedade em geral.
Importa lembrar, a esse propósito, que a esquizofrenia, isoladamente, representou em 2015 um custo total de 436,3 milhões de euros, correspondendo a 0,24% do PIB (Gouveia et al. 2017).
As terapêuticas psicofarmacológicas não permitem uma cura para um episódio psicótico, seja qual for o diagnóstico a que corresponda, mas percorreram o mesmo caminho de outras terapêuticas médicas e cirúrgicas: libertar o doente de sintomas secundários incapacitantes e melhorar dramaticamente a autonomia e funcionalidade. Assim, foi possível acolher os serviços de Psiquiatria nos hospitais gerais e acabar com um modelo de institucionalização que votava os doentes à exclusão social, familiar e laboral.
No entanto, estes avanços terapêuticos exigem o apuramento das intervenções psicológicas e sociais que permitam que sejam concretizados na vida de cada doente. O primeiro episódio psicótico representa um momento crítico de definição diagnóstica e terapêutica, em que uma abordagem adequada tem um impacto significativo no prognóstico e nos níveis de satisfação dos doentes, para além de uma importante oportunidade de investigação clínica e básica.
Procura-se a recuperação de um projeto de vida, mais do que apenas a tentativa de ocupação laboral ou de reabilitação de capacidades afetadas.
Essa tarefa necessita de equipas dedicadas e multiprofissionais, tecnicamente capazes de a desempenhar dentro e fora do hospital e disponíveis para orientar a sua atividade em função dos resultados obtidos e das melhores práticas atuais. Não podemos esperar que o SNS tenha todos os recursos necessários, mas devemos exigir que lidere na articulação com as respostas existentes nas diferentes comunidades em que se insere.
Ricardo Coentre, Pedro Levy e Tiago Santos
A criação, em 2016, da Secção do Primeiro Episódio Psicótico da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental é também um exemplo da capacidade de organização dos profissionais de saúde.
Em 2012, a partir de uma iniciativa de profissionais do Centro Hospitalar do Baixo Vouga e do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, foi possível mobilizar a rede de equipas dedicadas de serviços hospitalares de vários pontos do país, com a cooperação de todos e com um desígnio comum, no espírito do Plano Nacional de Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde.
O 4.º Encontro, realizado em 2018 no Porto, foi um excelente exemplo do dinamismo da atual Direção da Secção do Primeiro Episódio Psicótico, atualmente, liderada pelo Dr. Pedro Levy e pelo Dr. Ricardo Coentre.
Com mais de 200 participantes e mais de 80 trabalhos científicos apresentados, é uma área da Saúde Mental que se quer cada vez mais diferenciada, na certeza de que “se mudarmos o início da história mudamos toda a história”.
O artigo pode ser lido no Hospital Público de dezembro.