Opinião

Plano de recuperação, onde estás?


Miguel Guimarães

Bastonário da Ordem dos Médicos



Muito antes do verão, ainda durante a primeira vaga da pandemia, começámos a alertar para a importância de se encontrar um caminho que conseguisse compatibilizar o combate ao SARS-CoV-2 com a resposta aos doentes não covid. Não fomos ouvidos.

No verão, fizemos novas insistências e apontámos que o inverno seria crítico, pelo que importava criar, publicitar e operacionalizar um plano com tempo e sem esquecer os doentes de sempre.

Em setembro, apresentámos o movimento Saúde em Dia, que juntou a Ordem dos Médicos, a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Roche, num momento de sensibilização pública para a quebra de atividade do Serviço Nacional de Saúde em várias linhas, desde consultas e exames, passando por cirurgias, urgências e rastreios.

Foi apenas no final de setembro, precisamente no primeiro dia do outono, que o Ministério da Saúde apresentou o seu Plano da Saúde para o outono/inverno 2020-21, que se revelou um modelo teórico e incompleto, que nada dizia sobre a sua operacionalização, relegada para data posterior – que ainda continuamos a aguardar.

Nessa mesma altura, no âmbito do plano, foi anunciada a criação de uma task-force para os doentes não covid, sobre a qual mais nada se ouviu – e a única task-force que viemos a conhecer foi a da vacinação, num arranque também ele atabalhoado e com erros e injustiças difíceis de compreender num dossier estratégico para a recuperação do país, com os médicos, restantes profissionais de saúde e idosos a verem a vacinação passar para outros grupos sem os primeiros dos grupos prioritários estarem completos.

O movimento Saúde em Dia continuou a acompanhar os indicadores do resto do ano e o cenário é desolador. A opção política de concentrar uma grande parte dos recursos da saúde no combate à pandemia teve um impacto muito significativo nos outros doentes:

Em 2020 houve menos 7,8 milhões de consultas médicas presenciais nos centros de saúde do que em 2019, reflexo da decisão política de “obrigar” os médicos de família a fazer o Trace-Covid, entre outras tarefas covid-19 e outros exemplos.

Os dados foram analisados a partir dos números oficiais do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde. Já os contactos médicos não presenciais duplicaram de 2019 para 2020, passando de 9,1 milhões para 18,5 milhões, mas sabemos que a incipiente tecnologia fez com teleconsultas fossem substituídas por simples contactos telefónicos, com limitações de empatia, segurança, registo de dados, troca de informações, etc.


Miguel Guimarães

A análise feita pela consultora MOAI para o Movimento Saúde em Dia permite perceber, ainda, que no ano passado o impacto nos hospitais também foi significativo, com menos 3,4 milhões de contactos em 2020, entre consultas, cirurgias e urgências. Já nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica registaram-se menos 25 milhões de atos.

O plano de outono/inverno tardou, nunca foi completado ou atualizado, pelo menos que seja do conhecimento público. Do plano de recuperação para os doentes não covid nem sinal.

Aliás, houve até uma coincidência curiosa: quando, em fevereiro já deste ano de 2021, se soube que a Ordem dos Médicos, a APAH e a Roche apresentariam os dados consolidados do que ficou por fazer em 2020, os hospitais e administrações regionais de saúde apressaram-se a libertar, em catadupa, comunicados para a comunicação social com anúncios de arranque da suposta recuperação.

Infelizmente, o problema crónico e crítico que vivemos está longe de poder ser resolvido na comunicação social ou com propaganda. E os documentos estratégicos onde poderíamos ver uma luz ao fundo do túnel em nada nos animam, ou estão em paradeiro incerto.

No Orçamento do Estado para 2021 não encontramos um reforço de verbas que permita dar resposta a esta imensidão de cidadãos que precisam de nós mais do que nunca, muito menos encontramos uma estratégia para a área da saúde que permita revitalizá-la e dar-lhe a centralidade que demonstrou que merece.

O Plano de Recuperação e Resiliência também não é a resposta que os portugueses esperavam e mereciam. Dos 13.944 milhões de euros consagrados no plano, a fatia destinada ao Serviço Nacional de Saúde é de apenas 9,9%, no total de 1383 milhões de euros.

Mais, a verba será executada ao longo de cinco anos, pelo que, na prática, o reforço que trará é de menos de 2% da despesa total que o Orçamento do Estado previa. Além disso, grande parte deste valor destina-se a cumprir promessas antigas e adiadas, em vez de se concentrar numa verdadeira reforma do sistema, com uma visão integradora, incluindo a qualificação do capital humano.

Como diria Michael Porter, quando falamos de estratégia, é tão importante saber escolher o que fazer como o que não fazer (e a equipa governativa, infelizmente, parece estar sem um rumo transformador para qualquer dos lados da equação).



O artigo pode ser lido na edição de janeiro/fevereiro do jornal Hospital Público.

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