Consulta multidisciplinar do doente complexo é uma realidade na USF Avencas

“À semelhança das vias verdes hospitalares, também os cuidados de saúde primários têm de proporcionar vias verdes que atuem rapidamente”, afirma Raquel Baptista Leite, coordenadora da USF Avencas e responsável pela conceptualização da  Consulta Multidisciplinar do Doente Complexo.

“Temos vindo a receber referenciações de casos emergentes, que não podem aguardar seis meses pela primeira consulta de Psicologia ou pelo apoio financeiro para pagar a renda ou a medicação crónica. São aqueles que precisam mesmo de uma resposta, daí também haver critérios de referenciação tão apertados”, justifica a médica.


Raquel Baptista Leite

Momento de transição

O projeto que está implementado na USF Avencas tem a sua origem na UCS Parece, quando aí arrancou em junho de 2023, com o propósito de promover a "discussão multidisciplinar de casos complexos, otimizando tempo e recursos na resolução da situação global dos utentes referenciados".

Este projeto-piloto foi então dinamizado por dois médicos, na altura internos do 4.º ano de MGF , João R. Nunes Pires e Mariana Castro Guimarães, suportados pela médica Raquel Baptista Leite. Entretanto, em janeiro deste ano, a UCSP Parede foi extinta, dando lugar à USF Avencas, garantindo, no entanto, a continuidade da Consulta. 



"Fomos nós que mudámos ou foram os utentes?"


Desde agosto de 2022, quando chegou à UCSP Parede, que Raquel Baptista Leite, vinha a confrontar-se com “um leque de utentes com uma multiplicidade de problemas, das mais diversas dimensões, para além da biológica, que eram ingeríveis naquele tempo de consulta”.

Quando percebeu que a sua dificuldade era partilhada por outros colegas, procuraram, em conjunto, responder a algumas questões: “Quais são os motivos que nos levam a atrasar a nossa consulta? Fomos nós que mudámos ou foram os utentes?” Concluíram que, de facto, estes eram diferentes.

“Muitos deles sem médico de família, não tinham um seguimento longitudinal prévio, com frequência, nem mesmo registos clínicos anteriores, não podendo, por isso, ter a mesma abordagem dos outros utentes que mantinham um acompanhamento regular. Pelo menos nesta fase, essa abordagem tinha de ser especial”, refere Raquel Baptista Leite.

Daí nasceu a ideia de criar uma consulta multidisciplinar inspirada nas reuniões que são feitas em contexto hospitalar, por exemplo, com os doentes oncológicos, em que os casos são levados a discussão entre as várias especialidades envolvidas e o feedback é transmitido aos doentes pelo médico assistente.



"Há um gestor de caso que representa um elo de ligação com o utente"

Neste projeto, as consultas multidisciplinares decorrem mensalmente, sem a presença dos utentes, reunindo a equipa gestora, enfermeiro comunitário, psicólogo, assistente social e nutricionista, podendo ainda ser ativada a colaboração dos profissionais dos cuidados continuados, dos cuidados paliativos e da saúde escolar.

Tratando-se de um projeto-piloto, tem abrangido apenas os doentes da UCSP Parede, agora USF Avencas, e que apresentem pelo menos um problema em cada uma das seguintes dimensões: biológica, psicológica e social. 

De acordo com João R. Nunes Pires, o intuito é que a referenciação contemple “os utentes que mais beneficiam de uma discussão multidisciplinar e integrada”, uma vez que, “num processo normal, a comunicação associada à referenciação não é tão bidirecional, rápida e efetiva quanto se pretende”.

Nestas consultas, que decorrem mensalmente e durante cerca de duas horas, “os vários grupos profissionais debatem em conjunto a forma como devem ser abordadas as problemáticas do utente”.



Raquel Baptista Leite destaca que esta dinâmica garante “uma otimização de recursos porque, enquanto no passado acontecia o médico fazer três referenciações, para proporcionar ao doente apoio psicológico, nutricional e social, havendo o risco de se perder informação quando o utente tem de detalhar a sua história inúmeras vezes, com este projeto, essa apresentação é feita em equipa e há um gestor de caso que representa um elo de ligação com o utente”.


Mariana Castro Guimarães admite que destas consultas resulta “um plano conjunto mais estruturado e personalizado, otimizando-se o tempo e os recursos disponíveis, com respostas profícuas e mais céleres, conseguindo avançar-se mais rapidamente do que se as referenciações fossem realizadas separadamente”.

Numa fase inicial, os utentes que podiam ser abrangidos nesta consulta eram os da UCSP Parede, quer tivessem ou não médico de família, e ainda casos referenciados diretamente pelo Conselho Clínico e de Saúde do antigo ACeS de Cascais.



A recompensa por fazer a diferença

Mariana Castro Guimarães adianta que tanto ela como o colega João R. Nunes Pires têm “aprendido imenso sobre os recursos disponíveis na comunidade”, frisando mesmo que não teriam conhecimento da existência de muitos deles se não tivessem esta oportunidade de cooperação com outros profissionais de saúde.

Suportando-se num exemplo que “representa bem a mais-valia desta consulta”, o médico destaca a referenciação de uma utente invisual que estava desempregada e a cuidar do seu filho de 18 meses, que culminou numa visita domiciliária conjunta com vários elementos profissionais:


“Além de termos sinalizado os recursos que permitissem capacitar a utente para uma vida autónoma, na visita ao seu domicílio, conseguimos identificar outras problemáticas até então desconhecidas, como o facto de morar num sótão com condições precárias e cujo acesso − umas escadas íngremes e sem qualquer proteção − representava uma fonte de risco iminente de acidente para si ou para o seu filho de 18 meses, que tinha começado a andar.”

Acrescenta que, “adicionalmente, foi possível excluir a suspeita da médica de família de um quadro de défice cognitivo, dada a ausência de interação com a utente e exclusiva intermediação por parte da sogra nas consultas que haviam tido na UCSP, o que veio a revelar tratar-se, sim, de uma falha de comunicação, uma vez que a utente, natural de Guiné-Bissau, apenas falava crioulo. Tal só foi possível com a ajuda de um colega médico que falava o idioma e se disponibilizou para a tradução durante a visita”.


Raquel Baptista Leite (ao centro) com João R. Nunes Pires e Mariana Castro Guimarães

O sentimento de gratificação perante o sucesso deste caso é inevitável: “Quando percebemos que, hoje em dia, essa família está numa nova casa com condições sanitárias, o filho tem finalmente vaga numa creche, a utente tem o apoio de  uma associação para conseguir arranjar um emprego adaptado e tem as suas comorbilidades devidamente acompanhadas ao nível dos CSP e no hospital de referência, temos noção dos resultados práticos deste projeto.”

Esse foi “um dos casos que marcaram a equipa e no qual temos plena noção da diferença que fizemos, e que seria muito mais difícil sem um projeto deste tipo”, reconhece João R. Nunes Pires.

De facto, “em consulta ou numa visita domiciliária, não seria possível uma avaliação tão completa porque não estaria atento a dimensões e detalhes que vão para além da minha formação médica. E o mesmo aconteceria com os restantes profissionais envolvidos. Além disso, esta dinâmica acaba por proteger o utente, ao evitar que tenha a sua intimidade repetidamente ‘invadida’ pelos vários profissionais que o procuram ajudar”.

A coordenadora da USF Avencas comenta tratar-se de “doentes muito complexos em situações limite, desde os mais novos aos mais velhos”, frisando “não se tratar apenas de idosos com pluripatologia, que, aliás, representam uma minoria”.


Objetivo de proporcionar "uma resposta mais abrangente"


Para que esta espécie de via verde não terminasse nos CSP, “o projeto deveria abranger também a participação dos cuidados secundários, nomeadamente quando são necessárias referenciações a consulta hospitalares”, defende João R. Nunes Pires. Nesse sentido, “torna-se importante formalizar a articulação entre cuidados de saúde primários e hospitalares, para que o seguimento seja o mais completo possível”.

Atualmente, oito meses depois de a UCSP Parede ter dado lugar à USF Avencas, sendo esta uma das unidades que integram a ULS de Lisboa Ocidental, Raquel Baptista Leite confirma que o projeto continua a decorrer, embora vivendo um momento de transição.

“Faz sentido que ganhe novos moldes e proporcione uma resposta mais abrangente, não apenas aos utentes sem médico, mas também com médico, não só da USF Avencas, mas também da área geográfica Parede - Carcavelos - São Domingos de Rana”, afirma.

Como salienta, “depois de contactar com a realidade dos utentes sem médico de família, não é possível ignorá-la e é inevitável e perturbador pensar na iniquidade de cuidados e de acesso à saúde que existe. É uma experiência realmente transformadora”.

Por outro lado, “percebemos que, acima do valor da nossa identidade enquanto equipa, seja USF, UCSP ou UCC, existe um valor maior, que é o do cidadão, para o qual estamos a trabalhar, no sentido de aumentar a saúde das comunidades”.

Atrás: Deolinda Bernardo, João R. Nunes Pires, Mariana Castro Guimarães e Anabela Sandra Secretário, Inês Domingos e Teresa Castelo



A reportagem completa pode ser lida na última edição do Jornal Médico dos Cuidados de Saúde Integrados.

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