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Cuidados Paliativos do ACES Cascais com admissão «o mais desburocratizada possível»

Apesar de contar apenas com pouco mais de quatro anos de existência, os profissionais da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos do ACES de Cascais, bem como os doentes e as famílias por ela servidos, reconhecem a mais-valia do seu trabalho.

Tendo como prioridade o reforço do corpo assistencial, para permitir alargar o horário de funcionamento, a criação da especialidade de Medicina Paliativa é algo defendido pela coordenadora desta ECSCP, como forma de contribuir para a mobilização de profissionais para a área.



O projeto nasceu pelas mãos da médica Tânia Varela e tem trilhado uma forte evolução, desde logo, em termos de recursos humanos, como explica: “Inicialmente, havia apenas a minha colaboração, durante 20 horas, e a de uma colega, na altura interna − a Dr.ª Rita Abelho −, que dispunha de 5 horas e que atualmente é um dos elementos médicos da equipa, com 20 horas".

Hoje em dia, prossegue, “dispomos de 90 horas médicas, onde me incluo a tempo inteiro, com duas médicas a 20 e uma a 10 horas, três enfermeiros a tempo completo e um quarto a 15 horas, uma assistente operacional a 40 horas, mantemos o Serviço Social com colaboração de 4 horas semanais e incluímos uma nutricionista também a 4 horas. Entretanto, vimos reduzido o número de horas de Psicologia, desde que a Dr.ª Maria Cristina Nunes se reformou, encontrando-nos a aguardar que essas horas sejam repostas”.

Especialmente perante a existência de feriados, não raras vezes os elementos da ECSCP se voluntariam a fazer horas extraordinárias e a ficar de retaguarda ao apoio telefónico para garantir que os doentes não ficam sem rede de apoio e acabem no Serviço de Urgência.



"Sistema de referenciação e admissão o mais desburocratizado possível"

Os doentes chegam referenciados pelas várias unidades funcionais do ACES Cascais (USF, UCSP, UCC), hospitais de dia, lares de idosos, mas sobretudo por equipas intra-hospitalares de suporte em cuidados paliativos (EIHSCP).

A médica mostra-se muito feliz por perceber que, “frequentemente, a mesma pessoa doente é referenciada pela equipa de saúde familiar e pela EIHSCP, o que mostra que os profissionais estão cada vez mais atentos às necessidades paliativas dos doentes e que procuram formas de ajudar”.

Cada vez mais comum é ainda a referenciação através de familiares, que encontram o contacto na internet, recebem esta recomendação através de alguém ou já tiveram a experiência de prestação de cuidados da ECSCP a outros familiares, o que, na opinião da médica, “revela alguma literacia por parte da população, que já começa a perceber o que são os cuidados paliativos”.

E evidencia que este conjunto de alternativas foi estabelecido ou promovido de forma muito consciente, tendo assim a equipa desenvolvido esforços para que “o sistema de referenciação e admissão fosse o mais desburocratizado possível, a fim de agilizar o processo”, precisamente por reconhecer a sua utilidade e urgência.

A profissional reforça a importância da atuação da ECSCP numa fase precoce, para que possa “perceber-se como se pode controlar sintomas para melhorar a qualidade de vida daquela pessoa durante o tempo que lhe resta, seja uma hora, um dia, uma semana, um mês ou um ano”.

A importância de "adequar os cuidados"

Além da identificação da abordagem, que “pode passar por uma radioterapia paliativa, com o intuito de resolver a hemorragia e, com isso, controlar a anemia e diminuir o cansaço do doente”, também é importante “adequar os cuidados, deixando de efetuar procedimentos que não trazem benefício, como a realização de alguns meios complementares de diagnóstico e terapêutica que obrigam a um esforço acrescido por parte de doentes e famílias, sem que o seu resultado tenha implicações no curso da doença e da decisão terapêutica”.

Tânia Varela esclarece que as altas não acontecem apenas por óbito, destacando que, “após a estabilização dos sintomas e a realização de trabalho de compreensão da doença, do prognóstico e dos objetivos dos tratamentos, muitos doentes permanecem ao cuidado da equipa de saúde familiar ou são encaminhados para unidades de Cuidados Paliativos, não obstante a possibilidade de readmissão na ECSCP”.


Tânia Varela

Mais Cuidados Paliativos, menos urgências


“É importante relembrar que as urgências dos hospitais estão desenhadas para dar resposta à doença aguda e não a pessoas com necessidades paliativas complexas. Pensar que doentes e famílias em situação de extrema vulnerabilidade possam nem sequer ter suporte telefónico tem de provocar angústia a qualquer pessoa” destaca Tânia Varela.

Tânia Varela realça que “os cuidados que se devem prestar a pessoas nesta fase de vida não se conseguem fazer em contexto de Urgência ou de Internamento, com exceção, naturalmente, de unidades de Cuidados Paliativos, que prestam cuidados de excelência nesta área”.


Neste âmbito, alerta que “as entidades decisoras não parecem estar a considerar o impacto que estas mudanças têm no Sistema de Saúde, nomeadamente na recorrência aos serviços de Urgência, por ser a única alternativa que os doentes têm”.

Como evidencia: “A acessibilidade é  escassa, ainda temos muitos doentes sem médico de família e existem situações em que o cuidador não consegue responder às necessidades atuais do doente, pois, ninguém lhe explicou como devia atuar e o que devia esperar.”

Igualar o processo da morte ao do nascimento

O paradigma é, contudo, diferente, no nascimento: “O SNS foi investindo na nos cuidados de saúde maternoinfantil, por isso nascemos com qualidade. Mas como é que morremos? Todos iremos lá chegar e, da mesma forma que há bebés que nascem de partos eutócicos, distócicos ou de cesariana, há pessoas que precisam da ajuda de uma equipa especializada no fim da sua vida, pois, nem sempre é simples.”

Sobretudo durante as últimas semanas de vida, “as mudanças são diárias, é preciso haver um ajuste constante na forma como as pessoas são cuidadas. E existir alguém disponível para apoiar os cuidadores é determinante para que o foco na qualidade de vida durante todo o processo se mantenha."

Conforme a médica sublinha, "é muito exigente cuidar de um ser humano, sobretudo quando este aumenta o seu grau de dependência e fragilidade diariamente. Então é importante que os cuidadores saibam que estão a fazer tudo o que devem para responder à situação em que o seu familiar/amigo se encontra, que será necessariamente diferente da que existia há um ano, um mês, uma semana, ou mesmo ontem."



O apoio que doentes e famílias necessitam "pode não ser o que tínhamos planeado"

No final de junho, a ECSCP do ACES Cascais seguia 30 doentes, sendo que alguns precisavam de cuidados uma vez por semana, enquanto outros necessitavam de acompanhamento diário.

“O desafio está em organizar o trabalho, mas também em ter a flexibilidade para aceitar que um doente que até agora necessitava de uma visita por semana vai passar a precisar de uma ou mais visitas diárias. Está numa fase da doença diferente, com maior necessidade de cuidados. A nossa resposta tem de ser a que as pessoas doentes e as suas famílias necessitam e não aquela que tínhamos planeado no início da semana”, expõe.

Alguns dos doentes acompanhados, por estarem sintomaticamente estáveis, são seguidos pelas suas unidades de saúde familiar e só em alguns momentos veem ativado o apoio da ECSCP em regime de consultadoria, para “garantir o controlo de sintomas e a melhoria da qualidade de vida”.

Claro que, entrando numa fase de descompensação, “com mais crises de dispneia, maior descontrolo em termos de dor, períodos de agitação noturna mais frequentes e falência de órgãos, o doente volta aos cuidados da ECSCP”. Neste âmbito, reforça a importância de haver uma “articulação permanente com as demais equipas, para garantir que há um encaminhamento assim que a situação se agrava”.

Elementos da ECSCP do ACES de Cascais.
Atrás: Edite Castegren, Vânia Sousa, Susana Andrade, Tânia Varela e Inês Madeira. À frente: Carla Carvalhosa, Ana Rita Machado,
Maria Cristina Nunes e Maria João Neves

A intervenção da enfermagem no domicílio e no seio da equipa


Edite Alegre Castegren é a enfermeira responsável da ECSCP do ACES de Cascais. Licenciou-se na área pela então Escola Superior de Enfermagem de Francisco Gentil, e o facto de a instituição se localizar dentro do IPO de Francisco Gentil levou-a a realizar aí vários estágios, permitindo-lhe contactar desde cedo com o cuidado ao doente oncológico.

A enfermeira destaca que as pessoas que acompanha lhe têm ensinado muito: “Algumas falam do quanto estão arrependidas por terem deixado o tempo passar e, nesse sentido, não terem tirado maior partido da vida. É impossível não retirarmos nenhuma mensagem dessas confissões tão íntimas. Têm-me ensinado que a vida é importante.”

Neste processo de morte, nota que “há doentes que estão orientados e apaziguados porque conseguem fazer esse percurso interior e, dessa forma, entram num estádio diferente”. E afirma conseguir sentir “quando os doentes estão espiritualmente noutra dimensão, porque ficam mais tranquilos, falam e despedem-se de forma diferente”.

No entanto, “nem sempre os familiares têm a correta perceção do momento que os doentes estão a viver, pelo que, frequentemente, querem que se mobilizem e comam normalmente, quando os órgãos começam a entrar em falência”.

Nesse sentido, uma das funções do corpo de Enfermagem é “capacitá-las, explicando-lhes, por exemplo, que o doente não consegue engolir ou está a engasgar-se muito porque a musculatura da língua não funciona da mesma forma e que ao dar-lhe menos comida não está a prejudicá-lo, mas a aliviá-lo”.

Edite Castegren realça que “o processo de comunicação sobre a morte deverá ser gerido ao longo do tempo”, sendo que “a priorização quanto aos processos terapêutico e de intervenção é diferente consoante o estádio em que o doente se encontra quando é referenciado à equipa”.



Edite Castegren: “Consigo sentir quando os doentes estão espiritualmente noutra dimensão, porque ficam mais tranquilos, falam e despedem-se de forma diferente”


“Vou mesmo morrer?”

Relevando a importância da atenção, concentração, foco e comunicação, sublinha: “Dar particular atenção ao que podemos ou não dizer, para não partilharmos verdades feitas que nada interessam, tendo consciência de que o silêncio é também uma forma de comunicação e em vários momentos é preciso fazê-lo para não criar prejuízo.”

A profissional adianta que, não raras vezes, é na ombreira da porta, já quando a equipa vai a sair do domicílio, que surgem as perguntas mais difíceis, como: “Vou morrer quando?” ou “Vou mesmo morrer?” Nesse caso, “é preciso os profissionais disponibilizarem-se e questionarem a família sobre o que estão a sentir e as suas dúvidas”.

“Esse tempo humano faz toda a diferença na vida das famílias e quem integra estas equipas tem de conseguir trabalhar a comunicação junto de quem apoia, transmitir confiança e segurança. O controlo de sintomas dos doentes é muito importante e permite um maior tempo de qualidade no dia-a-dia”, refere Edite Castegren. Entende, por isso, tratar-se de um “trabalho muito desafiante de tão exigente que é”.

Edite Castegren é uma das profissionais que estiveram na base da criação do protocolo de apoio no luto, o que a leva a fazer de perto esse seguimento. “Fazemos telefonemas espaçados no tempo e também uma visita de luto, de acordo com o protocolo.

Este acompanhamento protocolado permite, caso se justifique, proceder ao despiste ou à identificação da necessidade de apoio psicológico, direcionando a situação para a psicóloga da equipa”, refere.



A reportagem completa, que inclui entrevistas a vários profissionais, pode ser lida na edição de julho do Jornal Médico dos Cuidados de Saúde Primários.

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