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Saúde mental: intervenção precoce na psicose «muda a vida de doentes e famílias»

Um grupo de profissionais da Consulta de Intervenção Precoce na Psicose do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), criada em 2012, desenvolveu recentemente um trabalho com o objetivo de avaliar a qualidade de intervenção da mesma. Concluiu-se que 63% do total de doentes encontram-se em recuperação funcional e que 81% dos que são seguidos estão profissionalmente ativos.

O trabalho em causa, intitulado “QUALINPEP: Avaliação da qualidade dos processos e resultados numa consulta de intervenção precoce na psicose”, foi apresentado no 4.º Encontro Nacional do Primeiro Episódio Psicótico, tendo sido distinguido com o prémio de melhor poster.

Em declarações à Just News, o psiquiatra Nuno Madeira, coordenador da Consulta de Intervenção Precoce na Psicose do CHUC, começa por destacar a importância deste trabalho, ao recordar os resultados de um estudo observacional realizado há vários anos:

"Foi feita uma avaliação das pessoas internadas por um primeiro episódio psicótico entre 2007 e 2011. Concluiu-se que, um ano depois desse internamento, apenas uma em cada três estava a ser seguida". E acrescenta: "Mais tarde, foram frequentes os reinternamentos por novos episódios psicóticos."


Nuno Madeira

O médico sublinha estar provado que "uma adequada intervenção na fase inicial da psicose terá como potenciais benefícios uma recuperação mais célere e evidente, com conservação de aptidões e funcionamento, suportes sociais e familiares, melhoria do prognóstico global, bem como das taxas de internamento e até redução da morbimortalidade".

“Em cada ano, um em 3000 portugueses vai ter o seu primeiro episódio psicótico. Nalguns casos, será o primeiro de outros que surgem em consequência de uma patologia, sendo a mais frequente a esquizofrenia. Noutras situações, serão manifestações de diferentes doenças”, aponta Nuno Madeira.

Um contributo para uma melhor recuperação dos doentes

O trabalho agora realizado consiste num "estudo retrospetivo da coorte de doentes em seguimento ativo (com consulta em 2018) no intervalo de tempo de 1 ano."

A segunda autora do trabalho, a médica interna Sofia Ferreira, salienta que a principal intenção foi "fazer uma caracterização da consulta e perceber os pontos fortes e os aspetos que ainda podem ser melhorados". Qual o propósito? "Poder oferecer mais aos nossos doentes e conseguir manter, e até melhorar, este tipo de recuperação, que permite aos doentes integrar um projeto de vida o mais completo possível."


Sofia Ferreira e Sara Magano

A médica interna Sara Magano, primeira autora do trabalho, explica que "para avaliar a remissão da sintomatologia e a recuperação funcional foram usados instrumentos psicométricos, tendo sido possível aferir que, dos 98 doentes em seguimento ativo, 79 estão em remissão sintomática, sendo que, destes, apenas 21% ainda têm sintomas de doença psicótica".

Verificou-se, igualmente, que 63% do total de doentes encontram-se em recuperação funcional e que 81% dos que são seguidos estão a trabalhar, a estudar ou a fazer um estágio. O que é muito relevante porque, conforme refere Sara Magano, “significa que a maior parte dos doentes está integrada num plano de vida”.

Foram ainda avaliados os doentes que tiveram acesso a psicoeducação familiar com a equipa de enfermagem e a consulta de Psicologia, concluindo-se "ser necessária uma maior disponibilidade de recursos humanos a nível psicológico".

Maioria dos doentes sofre de esquizofrenia

Perante um primeiro episódio psicótico, o diagnóstico é, por vezes, complexo "e os critérios e mecanismos que existem para validação da prática clínica nem sempre são lineares". Por esse motivo, Nuno Madeira salienta "a vantagem de os doentes poderem ser acompanhados por uma equipa especializada", como aquela em que está integrado, que inclui, para além dos especialistas e internos, a Enfermagem, a Psicologia e o Serviço Social.

A maioria das pessoas seguidas na Consulta do CHUC tem esquizofrenia, doença que, segundo Nuno Madeira, afeta cerca de 1 em cada 100 portugueses, embora se admita que possa estar subdiagnosticada no nosso país, tal como noutros, aliás.

Nos últimos seis anos, por ali passaram aproximadamente 200 doentes, dos quais cerca de metade está em seguimento ativo.  A maior parte dos doentes é referenciada pela Urgência, mas há outras origens, como o internamento hospitalar ou os cuidados de saúde primários.


A equipa da consulta inclui psiquiatras (P), médicos internos (I), psicólogos (PSI), um assistente social (AS) e um enfermeiro (E): Nuno Madeira (P), Vítor Santos (P), Salomé Caldeira (PSI), Hélder Costa (E), Sofia Ferreira (I), Pedro Oliveira (I), Sara Magano (I), Sofia Morais (P), Manuel Coroa (I) e ainda (ausentes na foto) Miguel Bajouco (P), Joana Ribeiro (I), Maria João Martins (PSI) e Cláudia Correia (AS)

"Uma equipa diferenciada na intervenção precoce na psicose"

De acordo com Nuno Madeira, os primeiros períodos da doença ocorrem muitas vezes durante o ensino superior, sendo potenciados por um conjunto de circunstâncias, como o stresse académico "e, sobretudo, o facto de muitos se afastarem do seu meio sociofamiliar, o que favorece a eclosão do episódio psicótico".

10% da população seguida na Consulta frequenta o ensino superior.  Elementos da Psiquiatria deslocam-se semanalmente aos Serviços Médicos da Universidade de Coimbra – no âmbito da Consulta do Jovem Universitário –, onde são acompanhados estudantes com doença mental, alguns dos quais com patologia psicótica.

Por haver "uma equipa diferenciada na intervenção precoce na psicose", há oportunidade para fazer investigação laboratorial e clínica em articulação com outras estruturas da cidade de alguma forma relacionadas, como o Centro de Neurociências e Biologia Celular e as faculdades de Medicina e de Psicologia da UC.

Esta interligação tem dado lugar a vários projetos de investigação, mas também a ensaios clínicos, em colaboração com a indústria farmacêutica. Neste contexto, afirma, “tem sido possível oferecer não só conhecimento sobre as armas terapêuticas (farmacológicas ou não), mas também ajudar a aproximar os doentes de circuitos inovadores de investigação, ensaios clínicos, novos fármacos que estão a ser implementados pela Europa e que, quando são introduzidos em Portugal, são-no aqui em primeiro lugar”.

Psicoeducação familiar: a intervenção da Enfermagem

Enfermeiro no internamento de homens no Serviço de Psiquiatria do CHUC, onde desenvolve atividade há duas décadas, Hélder Costa integra a equipa multidisciplinar da Consulta de Intervenção Precoce na Psicose desde que a mesma foi criada.

Falando à Just News, o enfermeiro, que tem a especialidade de Saúde Mental e Psiquiátrica, explica que o principal objetivo do trabalho que desenvolve no âmbito da Consulta "é trabalhar a família como um todo, ou seja, faz a chamada psicoeducação familiar".


Hélder Costa

“Começo por explicar ao doente e à família o que é a psicose e como ultrapassar as dificuldades que surgiram, procurando antecipar os potenciais problemas que irão aparecer no futuro e como serão ultrapassados com sucesso”, afirma.

Com a psicoeducação familiar, tenta-se também estimular a vida ativa, estabelecendo objetivos a curto e médio prazo, a nível profissional, académico e pessoal, em jovens com isolamento social.

O papel da Psicologia

Manuel (nome fictício) teve o seu primeiro episódio psicótico em março de 2017, aos 18 anos, dando entrada na urgência do CHUC no contexto de uma tentativa de suicídio. Foi, posteriormente, encaminhado para a Consulta de Intervenção Precoce na Psicose. A Just News conheceu-o no âmbito de uma consulta com a psicóloga Salomé Caldeira.

De acordo com a profissional, numa primeira fase, um dos principais papéis do psicólogo é "trabalhar com o doente e com a família a adaptação à doença, explicando não só o que está a acontecer, mas abordando também aspetos relacionados com o prognóstico da situação".

Numa consulta desta natureza, o trabalho do psicólogo passa pelo apoio à recuperação pessoal, no sentido de ajudar o doente a desenvolver uma identidade positiva, para além da questão da doença mental, criando experiências sociais que sejam valorizadas pela pessoa.


Salomé Caldeira

“É importante educar acerca da psicose e seu tratamento, melhorar a autogestão da doença, incluindo a prevenção e o lidar com a recaída, trabalhar no sentido de reduzir o abuso de substâncias, bem como aumentar o apoio social e a qualidade das relações, incrementar a resiliência e o bem-estar do doente”, explica.

“Uma psicose não tratada é tóxica”

Questionado relativamente à terapêutica, Nuno Madeira conta que têm surgido muitas inovações farmacológicas, que garantem melhor adesão, têm efeito de longa duração, e são melhor toleradas. Além disso, estão também disponíveis terapêuticas não farmacológicas que têm acrescentado valor, nomeadamente, de base psicológica (intervenções grupais com terapias de “terceira geração”, por exemplo).

“Uma psicose não tratada é tóxica. Não só para a vida das pessoas, pois, conduz frequentemente a invalidez precoce, perda de rendimento e outros danos colaterais, mas também para o cérebro. Há evidência de haver, de uma forma genérica, morte neuronal, nalgumas regiões maior do que noutras, grave ao ponto de se poder ver numa TAC”, explica o psiquiatra.

Verifica-se mesmo que "alguns doentes com esquizofrenia já com alguns anos de evolução, sobretudo aqueles que não fizeram tratamento antipsicótico, apresentam atrofia cerebral".



Vantagens para doentes, "reduzindo custos diretos e indiretos”

No futuro, Nuno Madeira espera que seja possível oferecer mais aos doentes do ponto de vista da avaliação psicológica e das intervenções não farmacológicas.

“Sentimos que é altura de haver, através do próprio Programa Nacional de Saúde Mental, uma intervenção, por defeito, generalizada a todos os serviços públicos de Psiquiatria, para tentar agir o mais cedo possível nos casos de psicose. Isso traria vantagens não só para os doentes e suas famílias, mas também para o erário público, reduzindo custos diretos e indiretos”, garante o psiquiatra.



A reportagem completa pode ser lida no Hospital Público de março/abril 2019.

Distribuído em todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, e dirigido a estes profissionais, o jornal Hospital Público promove uma partilha transversal de boas práticas entre pares.

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