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Prestar cuidados de proximidade numa das zonas mais desfavorecidas de Lisboa

O calendário marcava o dia 6 de maio de 2008 quando a USF São João Evangelista dos Lóios, no Bairro dos Lóios, em Chelas, freguesia de Marvila, abria portas. Era o fim de uma luta de anos por parte da população, que há muito pedia um centro de saúde novo.

Localizada numa das zonas mais socialmente desfavorecidas do concelho de Lisboa, passou a dar resposta aos cerca de 4 mil utentes que não tinham médico de família há vários anos. Mães muito jovens, alcoolismo, toxicodependência e desemprego são alguns dos vários problemas socioeconómicos a que se tem de dar resposta nesta zona da capital.

Apesar dos desafios subjacentes a esta realidade, a equipa quer apostar, dentro em breve, na acreditação da Unidade, além de implementar novas valências e de continuar a lutar pela reparação do quiosque eletrónico de apoio aos utentes. A USF é tema de reportagem na mais recente edição do Jornal Médico dos cuidados de saúde primários.


Hernâni de Sousa: "A Medicina Familiar é o pilar da Medicina, é por aí que se devem abrir as portas do Serviço Nacional de Saúde.”

“No início, tivemos muitos casos de pessoas com hipertensão, diabetes, cardiopatia isquémica, entre outras patologias crónicas, que nem sequer sabiam que estavam doentes. A sua situação clínica deteriorava-se aos poucos, porque apenas recorriam ao hospital quando estavam muito mal”, conta Hernâni de Sousa, que coordena a USF desde janeiro de 2010.

Sendo modelo B desde 2012, com uma população total de cerca de 13 mil utentes, das freguesias de Marvila e Olivais, tornou-se na primeira USF da zona oriental de Lisboa e trabalho não tem faltado ou não se estivesse numa região onde tudo falta.

“A maioria das pessoas tem problemas graves em termos económicos e sociais vive em casas da Câmara, depende de subsídios, está desempregada e isso leva a que procurem a USF com frequência”, refere Hernâni de Sousa.
 


De facto, não aparecem ali apenas para tratar da sua saúde: “Como vivem muito do apoio do Estado, precisam de relatórios médicos e de outro tipo de documentos para manterem a casa, o subsídio de desemprego ou o rendimento de inserção social. Como muitos dos utentes não trabalham, acabam por ser bastante utilizadores dos nossos serviços.”

Associados aos problemas económicos estão outros tão ou mais preocupantes: “Há casos de toxicodependência, alcoolismo, famílias alargadas, mães muito jovens, mulheres que engravidam com o objetivo de usufruírem dos subsídios de gravidez e que veem isso como algo normal e vantajoso..."

"É uma realidade muito complexa, à qual nos tivemos de adaptar, para que possamos dar a resposta mais adequada”, diz à Just News o coordenador da USF São João Evangelista dos Lóios.



"Temos muitos recém-nascidos"

Com uma população muito jovem – embora também haja casos de idosos que vivem sozinhos, sobretudo na zona mais central de Marvila –, a Saúde Materno Infantil tem um grande peso na prestação de cuidados.

“Contrariamente ao que acontece noutras áreas de Lisboa, temos muitos recém-nascidos. Somos 7 médicos e já chegámos a ter 20 grávidas, cada um, num ano. As populações mais desfavorecidas tendem a ter mais filhos, apesar do apoio que damos em termos de planeamento familiar, disponibilizando métodos contracetivos das 8h às 20h, de segunda a sexta”, refere Hernâni de Sousa.



E continua: “É uma realidade muito particular, as pessoas vivem, sobretudo, numa comunidade fechada, ou seja, nascem e crescem no bairro e chegam ao ponto de, mesmo em idades mais novas (30 anos), não saberem onde fica o Marquês de Pombal, ou as Amoreiras. E estamos a falar de portugueses, pois aqui não há comunidades multiétnicas como noutras zonas de Lisboa.”

Acaba por ser um autêntico desafio para os 7 médicos, outros tantos enfermeiros, 5 secretários clínicos e o mesmo número de internos. “Tivemos de conhecer bem a população, perceber os seus usos e costumes e criar uma relação de proximidade, de confiança, porque facilmente se passa à agressão, sobretudo verbal, quando não é satisfeita a vontade do utente”, relata o coordenador.



“As pessoas já vêm ter connosco”


Maria João Andrade, enfermeira de família, está na USF São João Evangelista dos Lóios desde agosto de 2012. Antes passou pelo Serviço de Neonatologia do Hospital S. Francisco Xavier, em Lisboa. “Foram 18 anos da minha vida".

“Ter uma lista de utentes que acompanho, conhecer a pessoa nos vários ciclos de vida, os seus familiares, o seu contexto socioeconómico, é muito motivador, porque sinto que consigo fazer a diferença", afirma.

O que também lhe agrada particularmente nas suas funções de enfermeira de família é o facto de poder ter uma visão global dos utentes: “Estamos numa zona em que a população é muito fragilizada, quer do ponto de vista económico como social, e mais do que nunca é importante ter noção de toda essa envolvência, que se repercute, inevitavelmente, no seu estado de saúde.”

Além dos desabafos que vai ouvindo dos diferentes membros de uma família, a visita domiciliária de Enfermagem também permite ter uma visão mais geral: “Vamos ver o recém-nascido e a puérpera, mas também os idosos, e isso ajuda-nos a perceber o que se passa e o que pode estar a contribuir para determinado problema de saúde.”


Maria João Andrade

No caso dos idosos, a USF tem em mãos um projeto de visitas domiciliárias a partir dos 65 anos: “Para já, estamos a dar prioridade a quem tem 80 ou mais anos – felizmente, ainda há muitas pessoas com mais de 65 anos autónomas – e o objetivo é ir a casa e perceber o grau de dependência, os apoios que têm e o possível risco de queda.”

Maria João Andrade diz que as visitas acabam também por ser um momento de convívio: “Não nos cingimos ao Bairro dos Lóios, onde há muitos jovens e famílias alargadas, também damos apoio a muitos idosos que vivem sozinhos e isolados, sobretudo na zona de Marvila, mais próxima do centro de Lisboa.”



Proximidade é assim o lema da enfermeira: “Damos sempre resposta e exemplo disso é o caso de uma senhora, diabética, que passou a fazer insulina e que na primeira semana veio cá todos os dias. Chegou ao ponto de ter necessidade de me dizer o que comia, para mostrar que estava a fazer a dieta adequada para a diabetes.”

De futuro, aguarda pelo desafio da acreditação e espera consolidar a estruturação da Consulta de Hipertensão, um projeto iniciado há pouco tempo.

“Não nos limitamos a marcar e a confirmar consultas”

Com uma carreira de cerca de 40 anos em serviços administrativos na Saúde, foi com estupefação e incompreensão que muitos amigos viram a sua mudança para a USF São João Evangelista dos Lóios. “Perguntavam-me como poderia querer ir para um bairro destes e a minha resposta era só uma, pois, é precisamente aqui que temos de ter cuidados de saúde de proximidade”, conta Fernanda Cerqueira.



Estando na USF desde 2014, diz que foi muito fácil integrar-se na equipa e também junto da população. “Sinto que sou útil”, reconhece, apesar de nem sempre ser fácil: “As pessoas estão numa situação de enorme fragilidade e chegam aqui, muitas vezes, nervosas e alteradas, mas tenho que entender que, se fosse eu a estar do outro lado, iria fazer o mesmo.”

Continuando, a secretária clínica considera que se tem de pôr fim ao estigma e ao preconceito: “Primeiramente, há pessoas boas e más, como em qualquer lugar. Depois, nos casos mais complicados, temos que pensar que elas sempre foram maltratadas e que não tiveram determinadas oportunidades que lhes permitissem agir de outra forma.”


Fernanda Cerqueira

Na sua opinião, não há qualquer dúvida: "É necessário criar empatia. Ao colocarmo-nos no lugar dos utentes, mais facilmente compreendemos determinados comportamentos e conseguimos acalmar os ânimos”.

Como diz, “ser secretária clínica não se resume a marcar e a confirmar consultas, existe todo um trabalho de retaguarda, de interligação com os vários profissionais e, acima de tudo, de diálogo e de compreensão por quem vem ter connosco numa situação delicada, e de alguma ou muita fragilidade. Todas as pessoas merecem o nosso respeito, humanidade e compreensão”.


Uma equipa que se adaptou a uma realidade "muito complexa" e cujos desafios não impedem o lançamento de novos projetos em prol dos doentes

“Quebrar um ciclo de pobreza”

Na altura em que a Just News fez esta reportagem, Marina Teixeira estava nos últimos dias do seu Internato, após ter integrado a equipa da USF em janeiro de 2015.

Para a médica interna, natural de Leiria e formada na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, "nenhuma outra especialidade permite seguir todo o ciclo de vida da pessoa, que pode iniciar-se na pré-conceção e ir até ao acompanhamento da família no luto...”

Ter noção do contexto socioeconómico e cultural dos utentes é outra vantagem da Medicina Familiar: “Nesta USF isso é fundamental, porque a realidade social é gritante, com vários bairros sociais, realidades muito complexas, ex-toxicodependentes, pais que ficaram sem os filhos por causa da droga, outros que têm os filhos presos... Não é fácil.”


Marina Teixeira

Em suma, um dos trabalhos que tem de ser feito é o que Marina Teixeira denomina de “quebrar um ciclo de pobreza”: “É importante capacitar as pessoas para lutarem por outras condições de vida, porque as crianças nascem e crescem numa conjuntura cultural, relacional e familiar que as leva a não contornarem estes problemas sociais.”

A realidade populacional não é fácil, mas a médica garante que isso não a assusta: “Pelo contrário, obriga-me a estar mais atenta a toda a envolvência da pessoa que tenho perante mim na consulta. Não se deve ter medo de se conhecer e de tocar a realidade das pessoas, deixando de lado preconceitos e olhando mais para a história de cada um, mesmo que seja complicado entender o que aconteceu na sua vida.”

Face à experiência “muito enriquecedora”, Marina Teixeira espera ficar como especialista na USF. “Existe essa possibilidade e é isso que quero. Nesta equipa aprende-se muito e sentimos, desde o primeiro dia, que estamos aqui para trabalhar, ou seja, não somos tratados como estagiários mas como colegas”, diz.

E acrescenta: “Os próprios utentes percebem que temos um papel ativo e reconhecem o nosso trabalho.”


Vista exterior da USF

Quiosque eletrónico: “Tinha funcionalidades muito vantajosas"

Ao longo da reportagem, o coordenador da unidade destaca um sistema que ajudou a que as coisas funcionassem substancialmente melhor na unidade: o quiosque eletrónico, que permitia, além de organizar as filas de espera de acordo com o motivo de deslocação à USF, confirmar consultas e pagar as taxas moderadoras sem necessidade de atendimento pelo Secretariado Clínico.

“Tinha funcionalidades muito vantajosas, que facilitavam as coisas ao utente e aos secretários clínicos, mas, infelizmente, há 2 anos que deixámos de ter acesso ao mesmo, por causa de uma avaria!”, lamenta Hernâni de Sousa.

Um problema que tem suscitado queixas: “Passámos a ter imensas reclamações por parte dos utentes, que têm de esperar mais tempo para confirmar e pagar as consultas. O quiosque permitia, inclusive, hierarquizar logo quem pagava ou não taxa moderadora.”



Apesar deste constrangimento, o médico reconhece que o modelo USF contribuiu para que os primeiros tempos no Bairro dos Loios fossem “mais positivos que negativos”:

“Passámos a trabalhar em equipa, a organização é muito melhor, os meios materiais também, e isso permitiu criar condições para se prestarem cuidados de qualidade, de proximidade e muito mais humanizados e personalizados.”

Características que têm feito toda a diferença, principalmente quando se trabalha com uma população mais desfavorecida e fragilizada: “Os utentes sentem que nos preocupamos com eles e que fazemos tudo para dar resposta quer a situações agudas – ninguém fica sem consulta, apesar de serem muito utilizadores –, quer às mais burocráticas.” Além disso, “as pessoas sabem que podem telefonar a qualquer hora e que são atendidos por um médico ou um enfermeiro”.

Para os próximos tempos, Hernâni de Sousa espera vir a ter um outro desafio: “Queremos apostar na acreditação e, obviamente, dar sempre uma resposta de qualidade, humanizada e próxima à nossa população.” E reforça que “a USF espera uma resposta para a questão do quiosque, porque se trata de uma grande mais-valia para a população”.



A reportagem completa pode ser lida no Jornal Médico dos cuidados de saúde primários de abril 2019.

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