KRKA

«Aprender a voar em pleno voo»


Xavier Barreto

Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)



Imaginem que um piloto de avião iniciava o seu percurso de aprendizagem aos comandos de um voo comercial com 300 pessoas a bordo. Não como elemento suplementar da tripulação, mas antes como alguém que, no 1.º dia da sua formação como piloto, fosse encarregue de assumir os comandos desse voo comercial.

É naturalmente uma metáfora absurda, certamente entendida como inverosímil por todos.

O que é espantoso é que, nas Unidades Locais de Saúde (ULS), uma situação semelhante seja entendida como aceitável. As Unidades Locais de Saúde são organizações complexas e
difíceis de gerir. Pela sua estrutura organizacional, pelo caráter multidisciplinar das suas equipas, pelos múltiplos interesses em jogo e até pelo Serviço sensível que prestam, são organizações particularmente exigentes para a gestão. Também por isso, são organizações particularmente sensíveis à capacidade de gestão de quem dirige.
 
Ainda que o contexto nem sempre favoreça a boa prática (falta de autonomia, subfinanciamento, entre outros condicionamentos), a gestão pode fazer a diferença nos resultados das ULS. O acesso, a qualidade, os resultados clínicos são influenciados pela capacidade de gestão de quem os dirige.

Partindo deste pressuposto, como se pode entender que o atual enquadramento jurídico permita a nomeação, para Conselhos de Administração (CA), de profissionais sem qualquer tipo de experiência ou formação em Gestão em Saúde / Administração Hospitalar?


Xavier Barreto

Nas ULS recentemente criadas, em regra, os Conselhos de Administração (CA) são/serão constituídos por 6 ou 7 elementos: 1 presidente, 2 médicos, 1 enfermeiro e 2 ou 3 vogais executivos. Dois dos vogais executivos são nomeados, respetivamente, pelo Ministério das Finanças e pela Comunidade intermunicipal (CIM)/Município onde se insere essa ULS.

Parte significativa da estrutura de gestão destas organizações (Recursos Humanos, Serviços Financeiros, Compras, Instalações/Equipamentos, Informática, entre tantos outros serviços e departamentos) será gerida por estes 2 vogais (de acordo com a delegação de competências de cada CA).

Como explicar então que, em variadíssimos casos, sejam nomeados vogais executivos sem qualquer tipo de formação e/ou experiência profissional relevante? Como explicar que em vários casos sejam nomeados responsáveis partidários sem qualquer percurso na Gestão em Saúde? Como podemos aceitar que a gestão de empresas públicas tão complexas, com orçamentos na ordem das centenas de milhões de euros, seja entregue a quem não tem qualquer prova dada neste setor?

Acompanhamos sempre a ideia de que os membros dos CA fossem nomeados pela Direção Executiva do SNS. Estranho seria que o dirigente máximo do SNS não fosse responsável pela nomeação dos seus dirigentes.

Mas fará sentido que, no caso dos dois únicos vogais executivos dos CA, essas escolhas sejam entregues a outrem (Ministério das Finanças e CIM/Municípios), “obrigando” a DE a nomear esses dirigentes?

O tema coloca ainda outras questões: uma equipa criada nestas circunstâncias será suficientemente coesa para trabalhar de forma concertada ao longo de todo um mandato? O que acontecerá quando os interesses forem divergentes? Os vogais executivos atuarão como membros de um órgão colegial ou como representantes de quem os propôs?


Como sabemos, o sistema tentou criar garantias. A CRESAP avalia os candidatos, mas, infelizmente, sem critérios objetivos relacionados com formação ou percurso. A apreciação é meramente qualitativa e, em muitos casos, parece ignorar os requisitos específicos da Gestão em Saúde. O escrutínio da decisão também tem barreiras. Em muitos casos, o relatório da avaliação feita pela CRESAP ao candidato é publicado muito depois da nomeação, o que prejudica a oportunidade do escrutínio.


Infelizmente, enquanto sociedade, temos aceitado isto com toda a normalidade.

A situação parece servir a todos, menos aos doentes, que são sempre os mais prejudicados. Hospitais ou ULS mal geridos têm piores resultados. Menos acesso, maiores tempos de espera, piores resultados clínicos e financeiros. Vamos a tempo de melhorar a lei, garantindo que os Hospitais são geridos pelos melhores e que todos sejam nomeados pela Direção Executiva, sem qualquer condicionamento ou necessidade de proposição por terceiros.

É tempo de exigirmos uma Gestão em Saúde profissionalizada e despartidarizada. Porque está em causa não apenas o Serviço que podemos prestar aos nossos utentes, mas, mais do que isso, os padrões morais e éticos com que queremos governar a coisa pública.

O artigo de Xavier Barreto pode ser lido na edição de janeiro/fevereiro do Hospital Público.

Imprimir


Próximos eventos

Ver Agenda