«A necessidade de formação específica em Enfermagem Forense»
Catarina Lobão
Prof.ª adjunta na Escola Superior de Enfermagem da Univ. Coimbra. Investigadora na Health Sciences Research Unit: Nursing – UICISA:E Coimbra
A evolução da Enfermagem enquanto disciplina e profissão é evidente. No entanto, ainda persistem estereótipos historicamente enraizados que a associam de forma subordinada a outras profissões da Saúde. Essa visão limita o reconhecimento da Enfermagem como ciência autónoma e complementar. Nesse contexto, a Ordem dos Enfermeiros desempenha um papel central ao valorizar as competências diferenciadas dos profissionais e ao promover práticas inovadoras, como é o caso da Enfermagem Forense.
O conceito de Enfermagem Forense foi introduzido pela enfermeira norte-americana Virgínia Lynch, que percebeu que, durante a prestação de cuidados, os profissionais de saúde frequentemente destruíam evidências essenciais, comprometendo a justiça e a resolução de crimes.
A Enfermagem Forense integra conhecimentos de saúde com as ciências forenses, aplicando-os na assistência a vítimas e agressores, na preservação de evidências e na colaboração com sistemas de Justiça e de Medicina Legal. O seu foco inclui o atendimento clínico, o apoio biopsicossocial e espiritual, a investigação e documentação em situações de violência, os acidentes graves, as mortes súbitas ou os desastres em massa.
Mais do que nos identificarmos como “enfermeiros forenses”, é essencial reconhecer que somos, antes de tudo, enfermeiros. A competência não reside num rótulo, mas nos conhecimentos, habilidades e valores que nos permitem detetar sinais de trauma, avaliar adequadamente, preservar vestígios e responder de forma abrangente às necessidades físicas, psicológicas e sociais das pessoas afetadas.
As intervenções de enfermagem devem ser realizadas com a preocupação constante de defender a liberdade e a dignidade da pessoa, assegurando igualdade, verdade, justiça, altruísmo, respeito pelos direitos humanos e pelo bem da comunidade. É fundamental proteger as pessoas (os nossos utentes, doentes, clientes) de práticas que contrariem a lei, a ética ou o bem comum.
O termo “forense” pode, por vezes, ser limitador ou induzir perceções erróneas sobre a prática. É, assim, essencial que todos os enfermeiros desenvolvam uma base sólida de competências e princípios éticos que lhes permitam atuar com segurança, eficácia e integridade, mesmo em situações complexas e desafiadoras.
Grande parte da formação em Enfermagem Forense, no contexto nacional, abrange áreas como Toxicologia, Genética, Antropologia, Criminalista, Psicologia e Psiquiatria Forense, entre outras. Mas será que faz sentido que o enfermeiro aprofunde conhecimentos em disciplinas nas quais a sua intervenção prática é mínima ou mesmo inexistente? Sem dúvida que o conhecimento enriquece a formação, mas não seria mais sensato concentrar a aprendizagem no desenvolvimento de competências de enfermagem e na construção de sinergias eficazes com as demais ciências forenses, de modo a aplicar o conhecimento científico de forma integrada e colaborativa, sem dispersão ou sobreposição de funções?
Estudos demonstram que preconceitos, mitos e estereótipos podem comprometer a deteção e o encaminhamento adequado de casos de violência. Por isso, a formação deve capacitar os enfermeiros a integrar cuidados clínicos especializados, a preservação e documentação rigorosa de vestígios, o apoio biopsicossocial e a coordenação com outras entidades, garantindo a proteção às vítimas e a integridade ao processo investigativo.
Sobressai, assim, a necessidade de formação específica, com planos de estudos estruturados e alinhados com a prática real da Enfermagem Forense, que priorizem a função autónoma do enfermeiro e promovam sinergias com outras ciências forenses. Avaliar uma vítima vai muito para além da identificação de lesões físicas: exige compreender os aspetos psicológicos, sociais e contextuais nos quais os maus-tratos ocorrem.
Uma formação adequadamente orientada para a Enfermagem permite que os enfermeiros atuem de forma ética, segura e eficaz, sem dispersão de funções ou sobreposição de competências, contribuindo decisivamente para a proteção das vítimas e para a qualidade do processo investigativo.
Em última análise, a função do enfermeiro em contextos de violência e de trauma demonstra a complexidade e amplitude do conhecimento da enfermagem, que ultrapassa a esfera clínica tradicional. Desde a prestação de cuidados até à preservação de evidências e o apoio integral às vítimas, a enfermagem evidencia a sua autonomia profissional e científica, consolidando-se como pilar essencial para a excelência do cuidado em situações complexas e desafiadoras, onde o respeito pela dignidade, pela justiça e pelos direitos humanos é tão relevante quanto a competência técnica.
Nota: Este artigo de opinião foi escrito para a edição de dezembro 2025 do Jornal Médico.


