«O Serviço de Urgência tem sido o Nó Górdio do SNS»
Xavier Barreto
Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)
Conta a lenda que, em Górdio, Alexandre, o Grande, deparou-se com um nó tão intricadamente entrelaçado que ninguém conseguira desatá-lo; quem o fizesse, segundo o oráculo, conquistaria toda a Ásia. Em vez de tentar desfazer cada laçada pacientemente, Alexandre optou por uma solução ousada: cortou o Nó Górdio ao meio.
Em vez de se ver paralisado pelas regras tradicionais – de que o nó teria de ser minuciosamente desfeito –, Alexandre adotou uma abordagem radical e inovadora, abrindo caminho para o seu avanço militar e político.
Há muitos anos que o Serviço de Urgência tem sido o Nó Górdio do SNS. A procura continua a crescer e a nossa capacidade para responder tem vindo a deteriorar-se.
O problema não começou hoje e tem raízes profundas no desinvestimento e na falta de visão estratégica de muitos governos dos últimos anos.
Manter todos os serviços de urgência do SNS abertos 24 horas por dia, 365 dias por ano, com os atuais recursos disponíveis (particularmente médicos), tem-se tornado um desafio difícil de transpor. Lamentar as falhas do passado ou esperar uma solução milagrosa não resolverá este problema, que exige transformação profunda, pragmatismo e uma análise criteriosa dos recursos que realmente temos.
Para isso, é crucial abrir portas a novas parcerias. As farmácias podem desempenhar um papel mais ativo em cuidados básicos de saúde e na triagem, libertando os hospitais de parte do volume de atendimentos que não exigem intervenção médica de urgência.
Da mesma forma, devemos criar espaço para funções mais alargadas dos enfermeiros, que podem assumir tarefas hoje concentradas nos médicos. Isso permitiria que estes últimos se dedicassem a casos mais complexos, em benefício da qualidade do serviço prestado.
A tecnologia, sobretudo a inteligência artificial (IA), é outra aliada importante. Sistemas de monitorização remota e algoritmos capazes de sinalizar precocemente doentes em risco podem diminuir a procura presencial, garantindo mais eficiência e menos sobrecarga dos serviços de urgência. Este acompanhamento à distância já se faz em vários países, com resultados promissores na qualidade de vida dos utentes e na otimização de equipas de profissionais de saúde.
Para além disso, é preciso repensar a própria distribuição geográfica das urgências. Não faz sentido tentar manter o mesmo modelo de há décadas quando a realidade demográfica, a evolução epidemiológica e as necessidades das populações se alteraram drasticamente.
Gerir é, sobretudo, encontrar a melhor solução possível perante as limitações – e não insistir em estratégias anacrónicas ou baseadas em pressupostos que já não se aplicam. Tal como Alexandre diante do Nó Górdio, não podemos ficar presos à ilusão de que basta “puxar mais um pouco” o mesmo fio para resolver o problema.
Por vezes, há que romper com estruturas obsoletas e procurar soluções arrojadas. Insistir em fórmulas antigas apenas prolonga os males do SNS. A mudança, ainda que drástica, é imprescindível para assegurar um futuro sustentável e equitativo nos cuidados de saúde.
A coragem para cortar o nó está nas nossas mãos.