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«Reduzir as perturbações mentais passa por reavaliar o contributo da Psiquiatria na comunidade»




Psiquiatria e Saúde Pública são áreas indissociáveis para J. G. Sampaio Faria, ex-gestor executivo do Programa de Saúde Mental da OMS Europa. Quer como médico, como no exercício de outras funções, sempre defendeu que não basta apenas tratar determinada perturbação mental, é preciso também apostar na prevenção. Na sua (longa) passagem pela OMS, contactou com realidades diferentes e não deixou de dar uma ajuda aos países onde se fala português.


“A ideia de se prestarem serviços no hospital não deveria pôr em causa os que devem e podem decorrer na comunidade.”

Just News (JN) – Seguir Medicina foi o que sempre quis? E a Psiquiatria, como surgiu na sua vida?

J. G. Sampaio Faria (JGSF) Frequentei o curso na FMUP, mas fiz a tese de licenciatura na FMUL. Medicina, sim, mas Psiquiatria não foi a primeira opção. Pensei especializar-me em Neurocirurgia, mas tudo mudou depois da experiência como médico militar miliciano em Angola, durante a Guerra Colonial. À época, após terminarmos o curso, éramos chamados de imediato para o Serviço Militar Obrigatório (SMO) e, como médico, fiz de tudo um pouco.

Nos primeiros 15 meses da comissão militar, em Angola, estive 1 ano e três meses em Ninda, uma pequena localidade muito isolada e localizada no Leste angolano e que foi imortalizada pelo meu colega psiquiatra e escritor António Lobo Antunes como o “Cu de Judas”, título de um dos seus primeiros livros.

Essa fase da minha vida influenciou muito a minha formação e o meu perfil profissional porque, quando voltei a Portugal, acabei por frequentar o curso de Saúde Pública no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, na Junqueira. Acabei também por decidir especializar-me em Psiquiatria. O tempo que passei em Angola e a experiência que aí vivi teve repercussões na forma como vim a desempenhar as minhas funções profissionais ao longo de uma carreira que já vai nos 45 anos.


JN – De que forma?
JGSF – A FMUP era uma instituição muito conceituada e que oferecia uma sólida formação médica de base, com forte enfoque na pessoa doente. Todavia, o facto de ter sido um jovem médico a prestar cuidados a militares e civis numa região muito isolada de Angola, e sem o apoio próximo de outros colegas, acabou por moldar a minha prática médica de um modo que não tinha imaginado.

Estava treinado para dar resposta a nível, sobretudo, hospitalar, mas fui obrigado a extravasar muito essas competências médicas, tendo de encontrar soluções para organizar serviços, prevenir epidemias que grassavam na população, como tuberculose, malária e, até, percevejos, que não deixavam ninguém dormir no aquartelamento.

Estas novas funções exigiam levar em conta não apenas o tratamento mas também a prevenção, com o controlo de outros determinantes da saúde.

JN – Daí a sua visão, que ainda hoje tem, da Saúde Mental (SM) de um ponto de vista mais global…
JGSF – Sem dúvida! A minha intervenção não se cinge apenas ao período em que a pessoa está doente, mas também ao antes e ao depois, de modo a poder intervir em contexto multidisciplinar, para minimizar riscos e prevenir.

É bem mais alargado do que o modelo médico clássico de intervenção e enquadra-se no de Saúde Pública, que procura não só tratar a doença mas também preveni-la. Como disse, a opção de me especializar em Psiquiatria deve ter tido a ver com a minha passagem por Angola.

Talvez as experiências mais traumáticas da guerra (assistir a feridos por armas explosivas, vivenciar ataques de morteiro ao aquartelamento, etc.) tenham mexido bastante com um possível núcleo neurótico da minha personalidade até aí escondido e me tivessem facilitado a aproximação para uma prática médica em que cabia também, para além do tratamento, a prevenção e a promoção da saúde.

Por outro lado, esta experiência em Angola foi curiosamente consolidada quando resolvi fazer a minha formação psiquiátrica no Hospital Miguel Bombarda (HMB), nos inícios da década de 70. Aí vigorava um modelo organizacional de serviços baseado na prestação de cuidados psiquiátricos completos a uma dada população (setor psiquiátrico), por equipas multidisciplinares que prestavam os seus serviços, quer na comunidade como no hospital.

Esse modelo, que para mim era desconhecido na altura, assegurava a realização de cuidados curativos dentro e fora do hospital, e dava apoio a outros serviços comunitários, médicos e não médicos, devotados ou com responsabilidades na prevenção e na promoção da saúde (incluindo a mental). Eram serviços muito inovadores e visavam garantir uma boa continuidade de cuidados.


JN – Ainda vivendo em Angola, já se interessava pelos traumas de guerra?
JGSF – Vivemos situações muito difíceis, algumas delas muito traumatizantes, como as que referi… Obviamente, perante aquele cenário, havia quem viesse a sofrer reações próprias do stresse de guerra, que acabariam por deixar sequelas tardias e, em muitos casos, gravemente incapacitantes.

Marcou-me, claro, e permitiu-me ficar sensibilizado para esse problema, na altura ainda pouco conhecido e estudado, e que só muito mais tarde acabou por colher a atenção das autoridades de saúde e da sociedade portuguesa.

MINISTÉRIO DA SAÚDE: EXTINÇÃO DO IAP E LUTA PELA PSIQUIATRIA NA COMUNIDADE

JN – Foi nessa altura que começou a colaborar com a então Direção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários (DGCSP), primeiro como assessor e depois como diretor. Foi também o último diretor do Instituto de Assistência Psiquiátrica (IAP). Quais os principais desafios que enfrentou?
JGSF – Foram, de facto, tempos difíceis. Naquela altura, na década de 80, quando fui chamado ao Ministério da Saúde, havia uma enorme pressão social e política para desenvolver o sistema de cuidados de saúde junto da população.

A Psiquiatria, apesar da enorme escassez de recursos, já tinha tentado esse caminho desde 1963, com a criação de novos serviços psiquiátricos extra hospitalares nos distritos interiores do país: os Centros de Saúde Mental (CSM) e os Setores Psiquiátricos Hospitalares (SPH) nas grandes zonas urbanas, onde se localizavam os hospitais psiquiátricos.

O desafio era extinguir o IAP e concretizar a decisão política de integrar os seus serviços psiquiátricos na rede de cuidados de saúde primários (CSP). A grande reforma dos serviços de saúde portugueses, encabeçada por Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio, em 1971, exigia que fossem coordenados/integrados nos recém-criados centros de saúde (locais e distritais) todos os serviços públicos de saúde existentes e que funcionavam de modo independente.

Nestes estava também o IAP, organizado em CSM e SPH, seus equivalentes nas grandes cidades. Nos novos centros de saúde, estava incluída na sua orgânica uma valência operacional de SM. A decisão política foi, assim, de os integrar na rede de CSP, para dar corpo à valência de SM dos centros de saúde, o que acabaria por ser inevitável a partir de 1979, creio eu, quando foi criado o Serviço Nacional de Saúde. Assim chegámos a 1984, com os serviços públicos de saúde portugueses a terem de ser integrados no SNS.

No caso do IAP, a decisão foi a de os seus serviços serem integrados na DGCSP. A opção não era fácil. A tradição organizacional dos serviços psiquiátricos em CSM e SPH (componente comunitária desenvolvida a par da tradicional componente hospitalar) vinha já do início dos anos 60, com a reforma psiquiátrica exigida pela Lei de Saúde Mental de 1963.

O desafio maior não era a integração dos cuidados na DGCSP, mas consolidar o modelo de intervenção alargado à comunidade, sem ferir a qualidade dos tradicionais cuidados hospitalares, onde estavam concentrados cerca de 85% dos escassos recursos psiquiátricos existentes na altura. Não só eram extremamente poucos como não seria possível, de um dia para o outro, colmatar essas falhas, sobretudo as humanas.

E foi a esse objetivo que devotei o meu contributo nessas funções de, com a participação de todos os serviços psiquiátricos, liderar a preparação de um primeiro Programa Nacional de Saúde Mental, para 5 anos, que partisse das necessidades da população, identificasse qualitativa e quantitativamente os recursos necessários, programasse a sua participação ao longo de alguns anos e indicasse os custos exigidos. Recordo-me que, em termos financeiros, o Programa implicava a subida do Orçamento para a SM – que era de cerca de 1,5% – para cerca de 3,5%.

Acabou por ser aprovado, em 1985, pelo ministro da Saúde Maldonado Gonelha, tendo-se iniciado a sua aplicação no ano seguinte. Contudo, a implementação foi interrompida em 1986, devido à queda do Governo (Bloco Central) e entrada de novo executivo ministerial. O novo Governo, com Leonor Beleza como ministra da Saúde, decidiu pela continuação; entretanto, após concurso internacional, fui selecionado para chefiar o Programa de Saúde Mental da OMS Europa, tendo deixado o país em janeiro de 1987.

JN – A escassez de recursos devia-se a quê, ao estigma?
JGSF – Também. Aliás, na última Lei de Bases da Saúde (2019), esse problema é especialmente expresso. E isso é importante para acabar com a situação dos serviços de SM como o “parente pobre da saúde”. Hoje em dia, a integração da Psiquiatria nos restantes serviços de saúde oferece às pessoas afetadas por perturbação mental a possibilidade de poderem ser atendidas na comunidade e nos hospitais gerais sem qualquer discriminação.

JN – Como viu a extinção do Instituto de Assistência Psiquiátrica?
JGSF – A história do IAP tem uma enorme relevância por causa do seu modelo organizacional, que desde a década de 60 já tentava conciliar a intervenção hospitalar com os cuidados junto da população.

Mas o problema da falta de recursos para o fazer vinha de trás. Já na década de 50 as reformas propostas por insignes mestres da Psiquiatria portuguesa, como Sobral Cid e António Flores, pugnavam por essa ideia, visando a “profilaxia mental”, mas esbarravam sempre na falta de recursos e de apoios. A Lei de 1963 também ficou por aí: escassez de recursos para poder, particularmente nos distritos interiores, desenvolver equipas multidisciplinares suficientes para prestar junto das populações um conjunto completo de serviços de SM, sem perda da qualidade no internamento.

A extinção do IAP e a integração dos seus serviços na DGCSP foi uma possibilidade de aproximar, de modo mais consistente, a prestação da Psiquiatria junto da população e, assim, apoiar adicionalmente as iniciativas devotadas à prevenção da patologia mental e à promoção da SM. Mas a tal crónica escassez de recursos e de apoios de reformas há tanto tempo tentadas acabaram por pôr em causa a capacidade das equipas, quer na comunidade como no hospital.

Isso levou a que, em 1993, creio eu, os serviços psiquiátricos tivessem acabado por ser integrados nos hospitais gerais como departamentos hospitalares de Psiquiatria e Saúde Mental.

Atualmente, os seus serviços concentram-se, fundamentalmente, no tratamento de pessoas que necessitam de cuidados hospitalares, mas o facto de se manter a designação de SM cria a esperança de que, com reformas devidamente apoiadas, o contributo ímpar da Psiquiatria para a Saúde Mental volte a ser um dia uma realidade, como o exige a Lei de Saúde Mental de 1998. Com cada vez mais pessoas com problemas de patologia mental a viver na comunidade e que requerem cuidados especializados, é difícil imaginar que possa haver, nessa comunidade, uma Psiquiatria sem psiquiatras.



JN – Ainda a nível nacional, com o avançar dos anos, mantêm-se, hoje em dia, muitas queixas de que não há recursos suficientes. Depois desse seu empenho,  o que sente perante esta realidade?
JGSF – Como disse, após a minha saída do Ministério, os serviços foram sendo reorganizados muito em linha com o Programa de Saúde Mental de 1986. Com os anos, passou a haver mais recursos humanos no foro psiquiátrico (psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, psicopedagogos, técnicos de reabilitação, etc.), mas, mesmo assim, ainda insuficientes para levar a cabo a missão dos serviços de SM prevista na atual legislação (Lei de Saúde Mental de 1998 e Lei de Bases da Saúde de 2019).

Por isso, a polémica entre correntes de opinião que defendem a missão da Psiquiatria como especialidade médica hospitalar ou como especialidade médica que tem também responsabilidades e um papel na prestação de cuidados junto das populações deveria concentrar-se mais no esforço dirigido à diminuição da dimensão epidemiológica das perturbações mentais.

A ideia de se prestarem serviços no hospital não deveria pôr em causa os que devem e podem decorrer na comunidade. Atualmente, existem vários indicadores epidemiológicos que apontam para um crescendo de problemas de SM na população, o que obriga a repensar o papel da Psiquiatria hospitalar na prestação de cuidados na comunidade, particularmente os destinados a quem não precisa de internamento, mas que têm extrema necessidade de acompanhamento psiquiátrico especializado.

Hoje há mais recursos humanos na área psiquiátrica e o vazio psiquiátrico comunitário tem vindo a ser progressivamente ocupado pelas equipas de profissionais dos centros de saúde, lideradas pelos especialistas de Medicina Geral e Familiar (MGF).

A opção pelo modelo do sistema de saúde inglês, centrado no clínico geral, tomada nos finais da década de 70 para o SNS português constituiu um dos principais fatores que contribuíram para o acantonamento dos serviços psiquiátricos no hospital. Mas a dimensão dos problemas de saúde mental justifica a necessidade de reequacionar o valioso e indispensável contributo da Psiquiatria hospitalar para a SM, sobretudo agora que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) inclui um significativo orçamento para a SM.

Portugal tem elevadas taxas de prevalência de perturbações ansiosas e depressivas, violência doméstica, consumo de substâncias ilícitas, medicamentos ansiolíticos, antidepressivos e hipnóticos, reinternamento de pessoas doentes saídas do hospital, tempos longos de espera para primeiras consultas, espaçamento de consultas de seguimento, taxas de comportamentos suicidários com evolução incerta, escasso apoio psiquiátrico à reinserção social de pessoas com perturbações mentais prolongadas, assim como a cuidados continuados integrados, uma insuficiente ligação com os serviços de MGF e de Saúde Pública, falta de serviços de intervenção na crise, etc.

A solução destes enormes problemas passa também por uma reavaliação urgente do indispensável contributo da Psiquiatria junto da comunidade, esforço esse incluído no Plano Nacional de Saúde Mental presentemente em vigor.




OMS: MUDAR A LEGISLAÇÃO A LESTE E APRENDER COM A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO LONDRINA

JN – Quando chegou ao cargo europeu da OMS, como responsável executivo do seu Programa de Saúde Mental, com o que é que se deparou?
JGSF – Quando, em 1987, cheguei a Copenhaga, sede da OMS Europa, uma das prioridades era a prevenção da perturbação mental e a promoção da SM. Tinha havido no ano anterior uma deliberação da Assembleia Mundial da Saúde que pedia desenvolvimento de planos regionais de prevenção das perturbações mentais e doenças neurológicas.

Outra prioridade era a redução das taxas de suicídio elevadas, padrão comum em muitos países, particularmente os do Centro e Norte europeu. Outra foi a da preparação do orçamento para o biénio 1988-90, tarefa difícil, pois, havia uma grande competição por fundos por parte dos vários programas da OMS. Recordo-me que tínhamos que preparar três versões, para a eventualidade de o orçamento poder vir a sofrer cortes de 25 ou 50%.

Com a experiência que levava de cá, procurei convencer os responsáveis por outros programas a incluírem a SM. Lemas como “No health without mental health” e “More health with mental health”, que criei para justificar a estratégia, foram inovadores e ainda hoje, de vez em quando, vejo estes títulos serem usados.

Outros programas, como os das Cidades Saudáveis, Saúde Infantil, Saúde do Trabalho, etc., aceitaram o desafio. Foi de certo modo inovador e aumentou as verbas! Com a desagregação da União Soviética, em 1990, o Programa de SM sofreu uma grande alteração, tendo sido redirecionado para apoio aos novos países.

JN – E no Leste, dava-se importância à SM ou era um assunto tabu?
JGSF – Encontrei profissionais altamente treinados em Psiquiatria curativa e um sistema de serviços baseado em grandes hospitais psiquiátricos, muitos deles isolados e com uma extrema falta de recursos materiais. Entre 1990 e 1996, foi nesses países que centrei a colaboração internacional apoiada pela OMS. Foi uma experiência única, pois, em muitos deles – iam até às fronteiras dos Himalaias – os contactos internacionais eram tradicionalmente muito limitados.

A colaboração centrou-se, sobretudo, na preparação de legislação em SM e no desenvolvimento de cuidados de SM, justificados não só por bases biológicas, mas também psicológicas e sociais, vertentes essas, à data, sem grande expressão na sua prática psiquiátrica. A colaboração também incluiu modelos de organização comunitária de prestação de cuidados de SM e Psiquiatria. Até tive de aprender algum russo básico para poder organizar mais facilmente essa colaboração!



JN – E noutros países, como os do Sul da Europa?
JGSF – Havia uma grande discrepância entre os recursos disponíveis para as reformas psiquiátricas entre os países mais ricos do Centro e Norte europeu e os do Sul. O processo de desinstitucionalização psiquiátrica estava em grande desenvolvimento, facilitado pela existência de muitos mais recursos humanos do que no Sul, o que contribuiu para uma redução dos internamentos em número e tempo e, por conseguinte, o esvaziamento progressivo dos hospitais psiquiátricos, que estava a ser levado a cabo aceleradamente.

Os recursos hospitalares ficaram, assim, livres para um trabalho na comunidade, que incluía programas de desinstitucionalização para pessoas com incapacidade mental grave e prolongada. Havia mesmo nesses países programas nacionais com esse objetivo e conseguia-se, adicionalmente, apoiar programas de prevenção e de promoção da SM em vários contextos, como os de trabalho, escolas, etc.


Nos países do Sul, com muito menos recursos humanos e outros, a tónica centrava-se na ligação da Psiquiatria aos CSP, em que o apoio aos especialistas de MGF era decisivo na altura. Organizaram-se encontros sobre SM nos países do Sul europeu, onde foram debatidas soluções para as dificuldades de desenvolvimento de serviços extra-hospitalares, próximos da população.

JN – Como portugueses, temos ainda a ligação a África. Na OMS também teve contacto com esse continente?
JGSF – A região africana, face à sua capacidade económica mais reduzida, beneficiava de programas de apoio da OMS europeia. Nesse contexto, dada a nossa ligação com os países de língua oficial portuguesa (PALOP), procurei desenvolver um programa de cooperação. Com a participação de especialistas de língua portuguesa, organizaram-se encontros na Guiné, Moçambique e Brasil.

Desses surgiu a necessidade de formação de especialistas de Psiquiatria. Por exemplo, em Moçambique, só havia, julgo, dois psiquiatras, na Guiné nenhum, e em Cabo Verde duas espanholas. A formação de especialistas em Portugal foi apoiada por vários departamentos universitários e instituições psiquiátricas, nomeadamente, no Porto, em Coimbra e em Lisboa.

JN – Como é que era vista a SM nos diferentes países do Leste europeu com os quais teve contacto na OMS?
JGSF – Havia uma visão mais organicista e institucional da Psiquiatria. Os conceitos psicodinâmicos e sociais da patologia mental, apesar da sua relevância, não só para o tratamento como sobretudo para a prevenção e promoção da SM, não eram salientes na prática psiquiátrica durante o período em que fizeram parte da ex-URSS.

JN – Quando saiu da OMS, o que ficou por fazer?
JGSF – No período final dos 10 anos em que estive na OMS, em Copenhaga, a guerra dos Balcãs (ex-Jugoslávia) obrigou a mais um desvio do programa de SM da OMS Europa, por causa dos refugiados de guerra. Com o Programa de SM modificado, por força da situação criada pela dissolução da ex-URSS e,  mais tarde, pela guerra dos Balcãs, é natural que alguns dos objetivos fossem redirecionados.

No entanto, no domínio do suicídio, conseguiu-se uma inversão das elevadas taxas nos países mais afetados com programas nacionais de prevenção.

No que respeita à desinstitucionalização psiquiátrica, o desenvolvimento de alguns programas devidamente avaliados e apoiados financeiramente pelos respetivos países, como foi o caso do fecho de dois hospitais londrinos e da desinstitucionalização na ilha grega de Leros (aqui com o apoio  da CE), mostraram a vantagem desse processo na qualidade de vida de pessoas institucionalizadas em hospitais psiquiátricos.


Constituíram modelos inspiradores para todos os países europeus. O desenvolvimento de apoios psiquiátricos aos especialistas de MGF, bem como à comunidade, por parte da Psiquiatria também teve alguns desenvolvimentos. Nos países do Leste europeu deixaram-se projetos de legislação de SM e o conhecimento de modelos alternativos para o desenvolvimento de serviços próximos da população.

JN – E relativamente aos países europeus mais avançados, o que mais o marcou?
JGSF – Devo confessar que foi a desinstitucionalização. Acompanhei de perto o processo do fecho de dois hospitais londrinos, que se estendeu por 10 anos e foi avaliado pelo Prof. Julian Leff, um reconhecidíssimo psiquiatra que foi um dos docentes da London School of Hygiene and Tropical Medicine da Universidade de Londres, onde fiz o mestrado em Medicina Social nos finais da década de 70.

Também vivi, como membro da Comissão Internacional de Acompanhamento, a reforma psiquiátrica grega, cujo objetivo central era o da desinstitucionalização de muitas centenas de doentes que viviam num grande hospital psiquiátrico na ilha de Leros.

Esse processo, que também demorou cerca de 10 anos, mostrou que, com recursos suficientes e o empenho de muitos jovens profissionais, é possível pôr fim a uma situação degradante em termos de direitos humanos e, ao mesmo tempo, lançar as bases de uma reforma psiquiátrica profunda.

E reconhecer, neste caso, a pertinência da colaboração internacional para esse fim. Outro aspeto muito importante para mim, na altura, foi o do crescimento, ao nível de muitos países europeus, da capacidade de empoderamento das pessoas afetadas por patologia mental, através da criação de federações nacionais e internacionais de associações de utentes com problemas psiquiátricos e a publicação de literatura centrada na experiência pessoal da perturbação mental.

A SAÚDE MENTAL NO PASSADO E NO PRESENTE

JN – O Hospital Miguel Bombarda fechou numa altura em que se falava muito de desinstitucionalização. Como vê esse processo atualmente?
JGSF – Bom, já estou fora do SNS há uns anos, mantendo-me apenas a trabalhar no setor privado, prestando clínica psiquiátrica ambulatória em duas localidades sem população urbana significativa.

Vou seguindo o que se passa, mas um pouco de longe, confesso. Quando regressei a Portugal, em 1996, retomei as minhas funções de psiquiatra do HMB. Algum tempo após, fui eleito diretor clínico do hospital e depois diretor do mesmo. Encontrei o HMB profundamente envolvido nesse âmbito, mas o problema é que não existiam no terreno comunitário alternativas residenciais e de apoio psiquiátrico suficientes e adequadas qualitativamente para levar essa desinstitucionalização a bom termo.

Em todos os casos que acompanhei na Europa, o êxito qualitativo do processo foi conseguido alocando, em primeiro lugar, recursos para a criação de alternativas residenciais e de apoio comunitário.

Não era esse o caso, na altura. Estava dependente da redução do orçamento hospitalar, para com ele ir apoiando a preparação de alternativas comunitárias e, como é demorado, para ter sucesso, isso levava a que os cuidados hospitalares e de reabilitação acabariam por ver afetada a sua ação em consequência da redução orçamental.

Mesmo assim, com o empenho de algumas organizações socias, o HMB tinha desenvolvido programas que permitiram a saída de cerca de 80 residentes, a maioria para a comunidade lisboeta. Isso permitiu fechar a enfermaria panótica, hoje museu, e transferir os doentes inimputáveis para uma enfermaria condigna.

Quando saí do HMB, por aposentação, ainda restavam cerca de 120 pessoas residentes passíveis de desinstitucionalização. Esse processo continuou e, presentemente, continua, julgo eu, no âmbito do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, para onde os serviços foram, entretanto, transferidos após o fecho do HMB. 

JN – Acha que, com a pandemia, se vão dar mais apoios à SM?
JGSF – A pandemia agravou o número de pessoas com perturbações do seu bem-estar mental, aumentando e alargando a dimensão dos problemas já existentes e detalhadamente identificados no atual Plano Nacional de Saúde Mental.

Se os cuidados psiquiátricos e de SM acessíveis junto da população têm sido insuficientes para dar uma resposta consistente a estes problemas, o impacto deste vírus tenderá a agravar a situação. Torna-se, por isso, decisivo aproveitar esta oportunidade, única, dada pelo significativo apoio financeiro à reforma dos serviços de SM, que consta do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português. Saibamos todos aproveitar esta oportunidade.

Como especialista em Psiquiatria, penso que, para este grande objetivo, também a Psiquiatria hospitalar tem uma importantíssima palavra e contributo a dar. E, nesse contexto, urge reapreciar esse contributo indispensável.

A decisão política em incluir no PRR, e pela primeira vez em Portugal, um vigoroso apoio financeiro à reforma da SM pode constituir a luz ao fundo do túnel escuro percorrido pelas sucessivas reformas de Saúde Mental tentadas nos últimos 200 anos! E essa luz não pode vir a fenecer por falta de apoios à SM, particularmente da Psiquiatria especializada.

Hoje, os serviços públicos de saúde estão integrados num único SNS, onde não há separação administrativa e gestionária entre hospitais e CSP. Há administrações regionais e locais onde hospitais e serviços comunitários formam um todo convergente para a resolução dos problemas de saúde da população. É a perspetiva que, como psiquiatra e académico da área da Saúde Pública, sinceramente desejo para a SM no nosso país.

JN – Ao fim destes anos todos, como pessoa, como é que a sua profissão o mudou?
JGSF – Muito do que sou devo-o à possibilidade de ter estudado e tirado o curso de Medicina. Sou um acérrimo defensor de que uma das maiores forças por detrás do desenvolvimento pessoal está ligada às oportunidades que o trabalho nos dá. Se me perguntar se foi difícil aproveitá-las… Claro que foi! Sempre tive que me esforçar muito para fazer as coisas com um mínimo de qualidade.

Sempre tentei ser um psiquiatra interessado pela Saúde Pública, até porque, a par da minha carreira profissional como médico especialista de Psiquiatria, desde cedo segui uma carreira académica universitária na Escola Nacional de Saúde Pública e na Faculdade de Ciências Médicas, em Lisboa, onde me doutorei e agreguei em Saúde Pública. Neste contexto académico, dediquei-me prioritariamente à investigação e docência em SM.

Não deixa de ser curioso que, tanto quanto é do meu conhecimento, o primeiro doutorado em Medicina, especificamente na área de Saúde Pública, em Portugal, foi… um psiquiatra! Advinha quem terá sido? [sorri]



Manter a atividade clínica aos 80 anos

Natural de Felgueiras, passou a sua infância em Vizela. Frequentou o curso de Medicina na FMUP, tendo feito a tese de licenciatura na FMUL. O seu percurso profissional acabou por decorrer no Sul, em Lisboa. Após a aposentação, mantém a sua atividade no setor privado.

Para ter uma vida mais calma, passou a viver na península de Troia com a mulher, onde gosta de receber os filhos, netos e amigos. “Sempre fui campestre! Ainda com a vida profissional em Lisboa, aproveitava os fins de semana para sair da cidade”, conta. Mantendo a atividade clínica, procura agora, aos 80 anos, descansar das muitas responsabilidades que teve.

Tem o Curso de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), é Mestre em Medicina Social pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, doutorado em Medicina, área da Saúde Pública, pela Universidade Nova de Lisboa, e tem o grau de agregado em Saúde Pública, também pela Universidade Nova de Lisboa.

Foi professor e regente da cadeira de Saúde Mental da ENSP, onde dirigiu o Departamento de Saúde Pública da mesma. Foi docente convidado em outras instituições universitárias públicas e privadas. Em 1984 foi designado assessor da DGCSP para a área da SM, tendo nesse mesmo ano sido nomeado diretor de Serviços de Saúde Mental.

Foi cumulativamente diretor do IAP, até à sua extinção, em 1984. Além-fronteiras, de 1987 a 1996, e após concurso internacional, foi escolhido para responsável executivo do Programa de Saúde Mental da OMS Europa, com sede em Copenhaga. Após o seu regresso a Portugal, foi eleito diretor clínico do HMB e em 1998 diretor e presidente do CA do mesmo, onde ficou até à sua aposentação.

Na atividade científica, coordenou diversos projetos de investigação a nível nacional e internacional e publicou vários artigos. Face ao trabalho que desenvolveu, recebeu do ministro da Saúde, em 2004, a Medalha de Ouro de Serviços Distintos e Louvor publicado em Diário da República.

Ambições para o futuro? “Nenhumas, exceto fazer por ter saúde e desfrutar da companhia da família, amigos e natureza.”



Entrevista publicada na LIVE Psiquiatria e Saúde Mental 2.

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