«As pessoas continuam a procurar muito mais a consulta em presença física. Não tem comparação possível»

Não obstante o entusiasmo com a inteligência artificial, Miguel Nobre Menezes, do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Maria, não hesita em valorizar o contacto humano na Medicina. Considera mesmo que será muito difícil que a IA alguma vez venha a substituir os médicos.

No entanto, garante que ela veio para ficar e até foi o foco central da sua tese de doutoramento. Para além da atividade centrada na Cardiologia de Intervenção, mantém também um interesse particular pela Cardio-Oncologia, área que desenvolve desde o início da sua carreira em Cardiologia.


Miguel Nobre Menezes

"Obriga a usar o raciocínio e a memória"

Em entrevista à Just News, publicada na última revista Coração e Vasos, Miguel Nobre Menezes não tem dúvidas de que "haverá com certeza poucos profissionais mais difíceis de substituir do que um médico".

E desenvolve a ideia: "Não nos podemos esquecer que, para exercer medicina, é necessário utilizar praticamente todas as nossas faculdades humanas. Por exemplo, para fazer um cateterismo a quem tem um enfarte é preciso conseguir comunicar com essa pessoa, elaborar um processo diagnóstico, tomar uma decisão terapêutica... obriga a usar o raciocínio e a memória. Recorremos também a intuição clínica, que é fundamental (embora não tenhamos uma grande explicação para esta).



Para Miguel Nobre Menezes, fica claro que "é muito difícil criar uma estrutura que artificialmente seja capaz de fazer tudo isto. Porque implica usar o pensamento, a intuição e todos os nossos sentidos". E não só.

Refere ainda "a exigência da execução física fina, que se liga ao uso da robótica, que tem evoluído muito, embora ainda tenha um longo caminho a percorrer. E depois há um aspeto que não tem que ver com a nossa capacidade cognitiva e técnica, mas sim com o que estamos a fazer, por exemplo, neste momento, que é ter uma conversa. Algo profundamente humano, não é?"

Na sua opinião, "a empatia e a confiança que se consegue transmitir com IA são muito difíceis de obter em Medicina se o doente não tiver um ser humano à sua frente" e refere a existência de "vários estudos já realizados vieram demonstrar que LLM como o chatGTP tem capacidade para continuar a dar sucessivamente uma resposta empática doente após doente".

E acrescenta: "Por oposição, o médico está sujeito a ceder perante a fadiga inerente ao exercício da profissão, tornando mais difícil manter um tom empático. No entanto, essa empatia também é alimentada por um tom de voz, pelo olhar, pelo contacto durante o exame objetivo ou a execução de uma técnica… Parece-me muito difícil que a IA venha a assumir a função de um médico."

E se lá chegarmos? "Então não haverá praticamente nenhum profissional que não seja substituível pela IA."



"São as questões de natureza logística e burocrática que dão mais dores de cabeça"

Miguel Nobre Menezes assumiu, entretanto, em dezembro de 2024, um cargo de responsabilidade na Unidade de Cardiologia de Intervenção do Hospital de Santa Maria:

"Fui nomeado pelo Prof. Fausto Pinto co-coordenador, com o objetivo de coadjuvar o coordenador médico, o Dr. Pedro Cardoso, que é o que tenho procurado fazer o melhor possível, sendo, portanto, uma responsabilidade acrescida que tenho agora… No entanto, a Unidade existe há muitos anos e, portanto, funciona em velocidade de cruzeiro."

Faz questão de lembrar que "existiam já áreas de responsabilidade atribuídas a vários colegas, com programas de intervenção na área coronária e estrutural", sendo que "os médicos têm autonomia, dentro do enquadramento institucional, logicamente, e exercem a sua atividade com plena responsabilidade. Recordo o que o saudoso Dr. Pedro Canas da Silva disse na sua última entrevista, em 2021, ao referir que tinha deixado uma jovem equipa médica de grande qualidade – eu não podia estar mais de acordo."

Destaca também a "equipa de técnicos e enfermeiros bastante sólida e experiente, que constitui um alicerce muito relevante. E ainda todo o apoio do pessoal auxiliar e administrativo. Temos a mesma secretária de unidade há muitíssimo tempo, que trabalha “de olhos fechados”, com enorme eficiência e eficácia. Portanto, desse ponto de vista, é relativamente tranquilo."

Quais são então os principais desafios? "Na verdade, são as questões de natureza logística e burocrática que dão mais dores de cabeça. E não são poucas!"

O médico refere que passou também a "monitorizar diretamente a atividade do Laboratório com regularidade, fazendo uma análise trimestral, com um conjunto de indicadores de forma semiautomatizada. Aliás, utilizei recursos de programação que tenho para facilitar o processo. Mas, como é uma Unidade com um assinalável volume e complexidade de casos, não é fácil."

Em jeito de resumo, afirma que, "para as condições que temos, consideraria o nosso desempenho assinalável. Poucas equipas atingem uma produção por unidade de tempo e número de salas como nós. Já na Arritmologia acontece o mesmo. É, felizmente, “cultura da casa”, desde que me lembro. O que não quer dizer que não possamos melhorar. Podemos e devemos, seguramente!"

Fausto Pinto, Manuela Fiuza, Andreia Magalhães e Miguel Nobre Menezes (foto de 2020)

Cardio-Oncologia: "Estamos a trabalhar num documento europeu de consenso"

Relativamente à ligação de Miguel Nobre Menezes à Cardio-Oncologia, explica que essa consulta foi criada há uns dez anos, mas, "informalmente, o projeto começou algum tempo antes, com o desenvolvimento de trabalhos de investigação. A Prof.ª Manuela Fiúza, que foi minha tutora no internato, desafiou-me logo no início, em 2012, a abraçar esse projeto, quando eu ainda estava na Medicina Interna."

E indica ainda: "É muito interessante porque as toxicidades cardiovasculares das terapêuticas oncológicas abarcam todos os campos da Cardiologia: a Arritmologia, a Clínica, a Imagem, a Intervenção…"

E quem faz a consulta? "Há internos interessados na Cardio-Oncologia, nomeadamente a Dr.ª Marta Vilela, minha tutoranda, mas temos sido três os especialistas a assegurar a Consulta: a Prof.ª Manuela Fiuza, a Dr.ª Andreia Magalhães e eu próprio. Mais recentemente, o Dr. Pedro Alves da Silva juntou-se a nós", explica.

Considera ser "uma área muito interessante, embora seja de nicho e se encontre ainda numa fase que se pode considerar nascente" e dá um exemplo:

"Redigi, em conjunto com outros colegas, um artigo de consenso sobre a Cardiologia de Intervenção em doentes oncológicos, uma tipologia de documento quase único a nível internacional em termos de conteúdo científico. Existia um trabalho de 2016, publicado nos EUA, e depois foram produzidas umas guidelines de Cardio-Oncologia, também há um par de anos, mas que abordam muito sumariamente o assunto. Quase não há artigos sobre a matéria."

Miguel Nobre Menezes revela ainda que, "na sequência da publicação, em 2024, desse nosso documento – em que se faz uma súmula da evidência existente e se apresentam recomendações relativamente às especificidades desses doentes, que implicam decisões difíceis –, fui convidado a integrar um grupo europeu que faz investigação nesta área".

E afirma ainda que tem também "trabalhado de perto com o Prof. Mamas Mamas, um cardiologista de intervenção e académico inglês muito conhecido e igualmente ligado à Cardio-Oncologia. Acabei por elaborar um artigo de revisão com ele e estamos a trabalhar num documento europeu de consenso nesta matéria, um projeto muito interessante."



A entrevista completa pode ser lida na Coração e Vasos 20 - Maio/Agosto 2025.

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