KRKA

«Há serviços de Psiquiatria com dois enfermeiros para 60 doentes! São situações indignas»

Francisco Sampaio, presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria, diz haver "situações absolutamente indignas" nalguns serviços hospitalares, de tão reduzido que é o número de enfermeiros em relação ao de doentes.

Uma preocupação que nao é de agora. Quando se apresentou como candidato ao cargo que agora ocupa, para cumprir um mandato de quatro anos, Francisco Sampaio definiu como “muito importante” conseguir-se calcular, com base em dados apurados a nível nacional, as dotações seguras para a área da Saúde Mental e Psiquiatria, isto é, apurar quais deverão ser os rácios enfermeiro/utente.

O responsável confessa, no entanto, que "não está a ser uma tarefa fácil", mas não tem dúvidas de que é necessário encontrar um valor que se aplique à realidade portuguesa.


Francisco Sampaio

“Continuamos sem conseguir realizar um cálculo a partir do contexto real da nossa prática clínica, que será com certeza distinto do que indicam as referências internacionais. Não temos um sistema de classificação de doentes que nos permita predizer quantos enfermeiros precisamos num determinado serviço, em função do tempo associado à realização de cada intervenção”, refere o enfermeiro, acrescentando:

“Consideramos primordial este trabalho, mas temos alguma dificuldade em realizá-lo porque, primeiramente, temos que ter um standard de documentação dos cuidados, de modo a que todos os enfermeiros registem a informação seguindo os mesmos critérios.”

"É francamente indigno para as pessoas com doença mental"

Na sua opinião, no setor da Enfermagem, a área da Saúde Mental e Psiquiatria será a que se encontra pior em termos de número de doentes por cada profissional. “Há situações que são absolutamente indignas, com serviços de Psiquiatria nos quais existem dois enfermeiros para 60 doentes! Isto é impensável! Que intervenção diferenciada é possível assegurar num contexto destes?”, questiona Francisco Sampaio.


“Se eu quiser realizar uma intervenção de grupo com 10 utentes, levo-os para uma sala e deixo o outro enfermeiro sozinho com os restantes 50. E quando  num turno da noite ficam apenas um ou dois enfermeiros para 80 utentes? É francamente indigno para as pessoas com doença mental, porque não lhes é assegurada a prestação de cuidados com um mínimo de qualidade, e põe em causa a própria segurança do enfermeiro”, afirma.



Investir na área da intervenção psicoterapêutica foi algo que o novo presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica também se propôs fazer:

“Isto porque nós temos um regulamento de competências específicas no qual está plasmado que os enfermeiros podem executar intervenções psicoterapêuticas, psicoeducacionais, psicossociais e socioterapêuticas. Mas sentimos que há muitas dificuldades a este nível, que começam no ensino dos conteúdos, na supervisão deste tipo de atuação durante os ensinos clínicos e na própria estruturação deste género de intervenção por parte dos profissionais que já fizeram a especialidade há mais tempo, quando estas matérias eram ainda muito pouco abordadas.”

Com a elaboração de um guia orientador de boas práticas neste domínio, já em curso, pretende-se indicar claramente que tipo de intervenção psicoterapêutica pode o enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica fazer e definir bem quais os seus limites de atuação, “traçando fronteiras com as outras áreas disciplinares, para que não surjam conflitos indesejáveis”.

Um Programa Nacional para a Saúde Mental “excelente”, mas… Francisco Sampaio identifica um problema de base na área da Saúde Mental e Psiquiatria: “As coisas são debatidas anos a fio e não se avança!” E exemplifica: “Quando vamos ver o relato da última reunião do Conselho Nacional de Saúde Mental verificamos que aquele poderia muito bem ser o resumo de um encontro que tivesse acontecido há uns 20 anos. Estamos constantemente a discutir os mesmos assuntos!”

“Temos tido ótimos programas, o Programa Nacional para a Saúde Mental é excelente, não nos faltam ideias, o problema é que não são concretizadas. Eu penso que alguns aspetos estão mais do que discutidos, falta-nos é transpô-los para a prática. Esse tem sido o grande desafio ao longo dos anos e ao qual não temos conseguido dar resposta”, desabafa.

O membro dos órgãos estatutários da Ordem dos Enfermeiros cita um exemplo:

“Há muitos anos que se fala em transferir a Saúde Mental para a comunidade, mas o facto é que o processo não tem avançado, decerto por falta de coragem política. Isto é muito claro, porque se trata de uma ideia na qual será necessário gastar muito dinheiro e o retorno não vai acontecer a curto prazo.

Ora, se nós queremos uma SM centrada na comunidade, vão ser necessários recursos humanos. Não basta tirar os doentes do hospital e colocá-los em casa!” Francisco Sampaio lamenta que se continue apenas com experiências-piloto no que respeita às equipas de Saúde Mental Comunitária, quando já se sabe que o ideal é inserir as pessoas com doença mental na comunidade.



“Mas, para isso, precisamos de ter lá psiquiatras, psicólogos, enfermeiros especialistas em SM e elementos de outros grupos profissionais. É certo que isso custa dinheiro, mas, para além do benefício social imediato, a investigação tem vindo a deixar claro que o retorno económico acaba por surgir a médio-longo prazo”, frisa.

“O debate multidisciplinar sobre estas questões vai existindo, mas existe de menos”, afirma, considerando que o Conselho Nacional de SM “é um bom sítio para se discutir estes assuntos, porque ali têm assento profissionais de várias áreas. Só que o Conselho é meramente consultivo, apenas apresenta recomendações ao Governo. O que lá se decide não é vinculativo. A dificuldade reside precisamente na passagem à prática”.


2312 especialistas em Enfermagem de SM e Psiquiátrica

Em 2019 já eram mais de 2200, agora são precisamente 2312. O número de enfermeiros especialistas em Enfermagem de SM e Psiquiátrica não para de subir, apesar de as áreas Médico-Cirúrgica e de Reabilitação, com a sua componente técnica, continuem a ser as mais atrativas, deixando para segundo plano a Saúde Comunitária, a Saúde Materna, a Saúde Infantil e a SM, esta última muito relacional.

Francisco Sampaio afirma ser difícil dizer quantos enfermeiros especialistas em Enfermagem de SM e Psiquiátrica deveriam existir em Portugal, “mas são seguramente precisos mais do que aqueles que existem agora”.

Até porque nos próprios serviços de Psiquiatria a grande maioria devia ser especialista em SM e Psiquiátrica e não é isso que se passa. Em todo o caso, “não sou fundamentalista ao ponto de considerar que todos o deveriam ser porque haver colegas de diferentes áreas pode ser benéfico para os utentes, até porque estes apresentam, não raramente, necessidades de outro foro”.

No fundo, é como haver enfermeiros especialistas em Enfermagem de SM noutros serviços hospitalares que não a Psiquiatria, como a Medicina Interna ou a Obstetrícia, “onde a sua presença pode ser benéfica”, embora “só consigam ser úteis se tiverem tempo e recursos para exercer as suas competências específicas”. O que não é viável “se o enfermeiro estiver a fazer o turno da manhã num Serviço de MI e tiver 10 doentes atribuídos”.



E chama a atenção para o facto de praticamente nada estar a ser feito em termos de Saúde Mental em contexto escolar, com intervenções ainda muito centradas, por exemplo, na higiene oral e na contraceção. O presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de SM e Psiquiátrica lembra que “existe um grave défice de literacia em SM”, que considera ser “um dos principais problemas que temos na população portuguesa, e ele deve ser combatido desde as idades mais jovens”.



A entrevista pode ser lida na LIVE Psiquiatria e Saúde Mental 3.

seg.
ter.
qua.
qui.
sex.
sáb.
dom.

Digite o termo que deseja pesquisar no campo abaixo:

Eventos do dia 24/12/2017:

Imprimir


Próximos eventos

Ver Agenda