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«O enfermeiro de Saúde Mental é ainda muito subvalorizado na equipa de saúde»

A cumprir um mandato de quatro anos como presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros, iniciado em janeiro de 2020, Francisco Sampaio lamenta "o papel secundário não raras vezes atribuído ao enfermeiro no acompanhamento da pessoa com doença mental".


Francisco Sampaio:  “Há muitas pessoas que consideram, por razões históricas, que o papel do enfermeiro no Serviço de Psiquiatria é ir vigiando os utentes e mantendo a ordem.”

"É fundamental que a intervenção seja efetivamente integrada"

Em entrevista à Just News, assegura que "é um elemento muito subvalorizado na equipa de Saúde Mental e Psiquiatria”. E destaca, desde logo, o facto de o enfermeiro, em contexto de internamento, por exemplo, estar junto do doente 24 horas por dia, o que o coloca numa situação privilegiada para que possa “realizar uma avaliação comportamental mais próxima e minuciosa”.

“Eu considero este aspeto muito relevante porque quase todos os restantes profissionais de saúde estão muito limitados ao momento da consulta e há alguns comportamentos que só podem ser observados num continuum ao longo do internamento”, sublinha Francisco Sampaio, valorizando logo de seguida o papel que o enfermeiro de Saúde Mental pode assumir “ao nível da intervenção psicoterapêutica, que é diferente da psicoterapia”:

“Pode trabalhar alguns sinais e sintomas, como a ansiedade, o humor depressivo ou a ideação suicida. Pode explorar estas áreas em contexto individual ou de grupo, no fundo, como suporte ao processo terapêutico do utente.” No entanto, para que as coisas funcionem, “é fundamental que a intervenção seja efetivamente integrada”.

Sucessivas avaliações e diferentes estratégias em simultâneo

Francisco Sampaio dá um exemplo muito concreto do que pode ocorrer quando não existe um alinhamento de todos os intervenientes:

“Hoje em dia, quando um utente recorre a um hospital, tem que contar a sua história ao psiquiatra que está no Serviço de Urgência. Quando chega ao Internamento, relata novamente a sua história ao enfermeiro que o recebe. No dia seguinte, é-lhe atribuído um psiquiatra, que pode não ser o que o admitiu no Serviço de Urgência, e terá que repetir tudo o que já tinha dito antes. Se, entretanto, se concluir que é necessária a intervenção do psicólogo, voltará a contar a sua história.”



Francisco Sampaio: “Sob o ponto de vista psicoterapêutico, os enfermeiros de SM poderiam ser muito úteis numa intervenção de complementaridade com os psicólogos e os psiquiatras”

“São, assim, feitas sucessivas avaliações, não havendo uma intervenção verdadeiramente integrada. E o facto de não existir um plano terapêutico multidisciplinar pode conduzir, por exemplo, a que o enfermeiro tenha uma intervenção junto do doente que vá até numa direção contrária à estratégia traçada pelo psicólogo, que muitas vezes não tem conhecimento da intervenção que está a ser realizada pelo enfermeiro", refere Francisco Sampaio. 

E sublinha: "No meu entender, esta é uma falha muito significativa – que cada um dos protagonistas não saiba claramente a intervenção que os restantes se encontram a promover –, originando, eventualmente, situações de sobreposição que apenas prejudicam o doente."

Existe vontade de outros profissionais, falta encontrar o "modelo ideal"

O presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de SM e Psiquiátrica da OE está convicto de que existem profissionais de outras áreas disciplinares, como a Psiquiatria e a Psicologia, que pensam da mesma forma, ou seja, que reconhecem a necessidade de promover uma intervenção terapêutica integrada nesta área da Saúde.

“Eu penso que a consciência dessa necessidade já existe há alguns anos, ainda não se encontrou foi o modelo ideal para a concretizar na prática clínica. Costumo dizer que nós falamos muito em multidisciplinaridade, mas, porventura, o que existe efetivamente na atualidade é a multiprofissionalidade, ou seja, há vários grupos profissionais a trabalhar para o mesmo utente, mas em separado, de forma desagregada”, refere Francisco Sampaio.

Na sua opinião, poder-se-ia começar, desde logo, por investir nos Cuidados de Saúde Primários, “que têm pouquíssimos psicólogos, psiquiatras muito menos, e onde os enfermeiros de Saúde Mental estão com frequência alocados a outras tarefas que nada têm a ver com a sua especialidade".

Faz questão de referir que se é certo que há alguns enfermeiros que estão em Unidades de Cuidados na Comunidade, "com um papel muito direcionado concretamente para a promoção da saúde e a prevenção da Saúde Mental, também há quem esteja numa Unidade de Saúde Familiar como enfermeiro de família, a fazer aquilo que qualquer outro colega de Saúde Familiar poderia fazer e até com competências mais diferenciadas nessa área”.

“A circunstância de no próprio Serviço de Urgência do hospital o utente ser avaliado exclusivamente pelo psiquiatra torna mais difícil, desde logo, traçar um plano de intervenção integrado”, salienta Francisco Sampaio.


Francisco Sampaio é professor, em regime de exclusividade, na Escola Superior de Saúde Fernando Pessoa e investigador integrado no CINTESIS, sediado na FMUP


Reuniões de Serviço: uma oportunidade para discutir o plano terapêutico 

O nosso entrevistado é igualmente crítico em relação à forma como, em alguns contextos, decorrem as reuniões de equipa nos serviços de Psiquiatria, lamentando que as mesmas sirvam muitas vezes apenas para discutir qual será o melhor medicamento para um doente, como é que outro se comportou na consulta de Psicologia, ou como é que um terceiro reagiu no internamento, mas não para traçar um plano conjunto de atuação:

“As reuniões de Serviço são o momento onde, claramente, isso poderia ser feito. Estão lá os psicólogos, os psiquiatras, os enfermeiros, os assistentes sociais, os terapeutas ocupacionais... Porém, não raras vezes, é discutido aquilo que resultou da vigilância do comportamento do doente e não o seu plano terapêutico.”

Para Francisco Sampaio, “há uma falha por parte de todos os intervenientes. O próprio enfermeiro, aquando da reunião de Serviço, poderia propor que se procurasse desenhar esse plano terapêutico, mas muitas vezes tal não acontece".

Na sua opinião, "o modelo vigente é ainda demasiadamente biomédico. Muitos médicos entendem-no assim, porque foram formados nesse sentido, e os restantes profissionais também tendem a não dar um passo em frente e propor: Vamos então definir um plano conjunto para este utente!". E, em jeito de conclusão, refere que "a culpa tende a ser repartida, pelo que todos têm uma quota-parte de responsabilidade”.



A entrevista completa pode ser lida no jornal Hospital Público de setembro/outubro 2021.

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