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Tratar os problemas sexuais do doente oncológico: «Têm de se pôr de lado pudores e preconceitos»

Foi há 11 anos que a Clínica de Oncosexologia do IPO de Lisboa começou a dar os seus primeiros passos. A mentora do projeto foi Lúcia Monteiro, diretora do Serviço de Psiquiatria, que faz questão de sublinhar que nessa altura, em Portugal, “nem sequer existia o conceito”.

A ideia surgiu na sequência da participação da Psiquiatra em congressos internacionais de Psico-Oncologia, onde se davam a conhecer as experiências de outros países. “Achei que fazia todo o sentido criar uma equipa especializada em Oncosexologia num centro de referência como é o IPO de Lisboa”, afirma, em entrevista à Just News.

Como em qualquer projeto inovador, nos primeiros tempos, foi preciso desbravar caminho, mas a tarefa até nem foi muito difícil. “Falei com colegas de diversas especialidades, que aderiram bem. Foi ainda fundamental o apoio do Conselho de Administração”, recorda.

Com base em guidelines internacionais, começou-se a organizar a atual Clínica de Oncosexologia, que conta com a colaboração de vários profissionais e especialidades, quer em consulta direta com doentes, quer em consultoria. Para além da Psiquiatria, outras áreas integram o projeto: Oncologia Médica, Urologia, Ginecologia, Digestivo Baixo, Estomaterapia, Radioterapia, Endocrinologia, Cirurgia Plástica, Radiologia, Psicologia e Serviço Social.

Num grupo multiprofissional, os enfermeiros são uma das peças fundamentais. “Como estão muito próximos dos utentes e dos seus familiares, ouvem todas as queixas, mesmo as mais íntimas; é crucial que tenham formação nesta área”, refere Lúcia Monteiro.



Desde os primeiros tempos, a equipa tem crescido e a o tema deixou de ser tão tabu: “Excetuando a Urologia e a Ginecologia, pelas suas competências, a questão da sexualidade não era uma preocupação. Aliás, sempre houve muito pudor em falar sobre sexo, principalmente se o doente é idoso, de outro género, ou está numa fase avançada da doença...”

Exemplificando: “Na receção de um novo doente, os enfermeiros passam sempre um questionário que integra o processo clínico. Questionam dados da história pessoal, a situação socioprofissional, a idade da menarca, o número de gravidezes, a medicação habitual... mas as questões relativas à sexualidade eram simplesmente ignoradas.”

Para se evitarem estas dificuldades de comunicação, procedeu-se à formação dos profissionais das equipas oncológicas, de modo a existirem pessoas treinadas nos diversos serviços do hospital. Após uma década, a sensibilização e a capacidade para abordar, detetar e intervir nos problemas sexuais dos utentes “melhorou imenso”.

“Nos primeiros 5 anos dedicámo-nos à nossa própria formação em Oncosexologia e a sensibilizar os profissionais para a temática. Tivemos o privilégio de poder trazer a Portugal alguns experts internacionais e contámos sempre com o apoio de especialistas portugueses da área da Sexologia. Temos ainda a mais-valia de a psicóloga Cristina Nave ser terapeuta sexual pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica”, refere Lúcia Monteiro.

Mais recentemente, tem vindo a ser dada formação a outras instituições. É o caso do IPO de Coimbra, que “já abriu esta valência e pode contar sempre com o nosso apoio”.


A Clínica de Oncosexologia envolve a participação de uma equipa multidisciplinar


"Saber comunicar e fazer perguntas"

O problema sexual mais comum no doente oncológico e nos dois sexos é a redução da libido, ou desejo hipoativo (perturbação do desejo, do interesse e da excitação, de acordo com a atual nomenclatura). Tem geralmente uma etiologia multifatorial complexa e, por isso, é também a disfunção sexual mais difícil de tratar.

Outros problemas igualmente frequentes são a dispareunia, ou dor genitopélvica à penetração, na mulher, e a disfunção erétil, no homem com cancro. As causas tanto são físicas como psicológicas e podem surgir em todos os tipos de cancro.

“São múltiplas as sequelas e iatrogenias sexuais secundárias aos tratamentos oncológicos, desde os efeitos físicos da RT nos órgãos pélvicos, as modificações hormonais secundárias à QT e à HT, o efeito disfuncional de uma dor crónica, as alterações da autoimagem associadas a uma cicatriz ou mutilação, o impacto relacional de um estoma", afirma a psiquiatra, acrescentando: 

"É frequente a mulher mastectomizada, sendo desejada, bem aceite pelo parceiro, continuar a ter problemas com o seu corpo e com a sua imagem, mesmo após uma reconstrução mamária bem-sucedida”.

Regra geral, são os doentes que sentem as maiores dificuldades, mas os companheiros também podem precisar de ajuda: “Uma esposa que foi a cuidadora principal de um homem dependente e fragilizado durante todo o período de tratamento ativo pode, depois, não conseguir olhar para o seu marido com o mesmo desejo sexual de outrora.”

“Há cada vez mais sobreviventes de cancro e,
destes, 50% irão sofrer de um qualquer
problema sexual”


"Têm de se pôr de lado pudores e preconceitos"

Para se dar resposta a estas situações, ou até para as prevenir, os profissionais do IPO de Lisboa dão especial importância à comunicação: “É essencial saber fazer as perguntas, introduzir o tema da vida sexual com normalidade e de acordo com o tipo de doença e tratamentos. O ideal é colocar a saúde sexual logo na ficha de caracterização clínica. A partir daí, deve-se perguntar regularmente se apareceram dificuldades quer durante o processo terapêutico quer no follow-up, informando que os problemas sexuais são consequências ou efeitos secundários expectáveis de muitos tratamentos oncológicos.”


Lúcia Monteiro: "A sexualidade é claramente influenciada pela cultura e pelos estilos e tradições familiares"

Para Lúcia Monteiro, “falar sobre estas questões deve ser tão normal como perguntar sobre dores ou náuseas e vómitos. Para que assim seja, têm de se pôr de lado pudores e preconceitos. As pessoas têm que perceber que podem falar sobre sexo com os seus médicos e enfermeiros e até solicitar ajuda técnica especializada. Para tal, deve ser o profissional a tomar a iniciativa e abordar a vida sexual em contexto de consulta. Dificilmente o doente falará no assunto de forma espontânea”.

Pretende-se manter a qualidade dos cuidados prestados na Clínica e a disponibilidade para dar formação a outras unidades hospitalares. Procurar-se-á ainda otimizar a informação junto dos utentes sobre os problemas sexuais nas diversas formas de cancro e nos vários tipos de tratamento. “É importante ter bons registos clínicos e boas bases de dados para facilitar uma futura investigação”, salienta Lúcia Monteiro, acrescentando:

“A este nível, é fundamental conhecer a realidade portuguesa e caracterizar os problemas e disfunções sexuais dos doentes e sobreviventes de cancro portugueses. A sexualidade é claramente influenciada pela cultura e pelos estilos e tradições familiares. Os resultados da população oncológica americana ou do norte da Europa podem não corresponder exatamente à realidade da Oncosexologia em Portugal.”

 

"Deve ser o profissional a tomar a iniciativa 
e abordar a vida sexual em contexto de consulta"

 

Atrofia vaginal: "Acabamos por precisar dos dilatadores"

Face à relevância do tema e ao “direito de se ter de volta uma sexualidade feliz”, Lúcia Monteiro defende uma maior aposta nesta área por parte dos hospitais, sobretudo dos centros de referência oncológicos.

E, como realça, “não é necessário um investimento tão grande como se possa pensar”. E explica porquê: “A formação é o mais demorado e dispendioso, mas hoje, com o nível de especialização e boa prática em Portugal, já não é obrigatório convidar professores estrangeiros, como tivemos de fazer no IPO de Lisboa, por termos sido os pioneiros. A boa prevenção e a intervenção precoce em Oncosexologia permitem muitas vezes evitar disfunções graves e complicações, cuja reabilitação já irá exigir o uso de dispositivos mais dispendiosos, como dilatadores vaginais ou próteses penianas.”

Nos IPO de Lisboa e de Coimbra, os dilatadores são comparticipados pela Liga Portuguesa Contra o Cancro. “Este apoio é muito importante porque, sobretudo no cancro pélvico, os tratamentos provocam estenose vaginal e, por conseguinte, dispareunia (dor pélvica na penetração).

A melhor forma de prevenir esta atrofia vaginal é a prática de atividade sexual frequente, o que não é fácil durante a fase de tratamento ativo; na maioria dos casos, para além das massagens digitais com cremes próprios, acabamos por precisar dos dilatadores”, refere Lúcia Monteiro.


Lúcia Monteiro: “Gostaríamos de poder ter a Consulta de Oncosexologia aberta ao exterior, mas para isso seria necessário ter mais recursos humanos e um espaço próprio”

“É fundamental rir e fazer aquilo que nos dá prazer”

Lúcia Monteiro é diretora do Serviço de Psiquiatria do IPO de Lisboa desde 2006 e da Clínica de Oncosexologia. Licenciada pela FMUL, esteve no Hospital de Santa Maria até 2000, quando foi convidada para se mudar para o IPO. A sexualidade sempre foi um tema de curiosidade, nomeadamente na Oncologia.

“É uma área de inovação e que tem sido um grande desafio”, diz. Fora do hospital, faz questão de ter e de aconselhar “bons tempos livres”.

“Digo sempre aos internos que é fundamental rir e procurar fazer aquilo que nos dá prazer. Só assim se consegue enfrentar o sofrimento e a dor com que lidamos diariamente no IPO. Ter um ambiente de equipa bem-disposto e apostar nos tempos livres são estratégias de evitar o burnout profissional e de tornar agradável o dia-a-dia no hospital de Oncologia.”



A entrevista pode ser lida na edição de julho/agosto do Hospital Público - jornal para profissionais de saúde, distribuído nos serviços e departamentos de todas as unidades hospitalares do SNS. Porque as boas práticas merecem uma ampla partillha!

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