Psiquiatras lançam livro sobre «casos bicudos e outros dilemas diagnósticos»

Apresentada hoje na Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, "Ornitorrincos Psiquiátricos" é, essencialmente, uma obra “de internos de formação específica em Psiquiatria para outros internos de formação específica em Psiquiatria”.

De acordo com os seus coordenadores, David Teixeira e Nuno Pessoa Gil, o livro pretende esclarecer dúvidas relativamente a “todas aquelas entidades mais incomuns, esquisitas ou difíceis de catalogar, que estranhamente os nossos manuais de diagnóstico atuais parecem olvidar e com as quais continuamos a cruzar-nos diariamente na prática clínica”.

Em declarações à Just News, Nuno Pessoa Gil, psiquiatra do Centro Hospitalar Tondela-Viseu (CHTV), faz questão de sublinhar que, “tal como é dito na introdução do livro, pretende-se demonstrar que o ensino e o exercício de uma psiquiatria clínica podem ser executados em centros hospitalares de menor dimensão, dispersos por um território que teima em escotomizar a interioridade”.


David Teixeira e Nuno Pessoa Gil

Este projeto editorial surge muito “como reação ao simples facto de que os internos de Psiquiatria do CH Tondela-Viseu sairiam penalizados em termos de avaliação curricular se não tivessem oportunidade de participar na edição de um livro”.

Nuno Pessoa Gil recorda que David Teixeira chegou um dia a uma reunião e anunciou que tinha tido uma ideia para um livro, de forma a que também eles, internos de um CH do interior, conseguissem escrever um manual técnico e, assim, suprir as exigências curriculares.

Essa ideia começou então a ganhar dimensão: “Ainda nos passou pela cabeça fazer algo sobre psicopatologia do atraso no desenvolvimento psicomotor, porque, infelizmente, temos uma população que sofre muito com esse problema. Mas depois achámos que não seria algo que criasse valor ou que despertasse interesse.”

“O David surgiu depois com a imagem do ornitorrinco – bicho heterogéneo que, pondo ovos, é mamífero e que, tendo um bico de pato, apresenta uma cauda semelhante à de um castor – e houve um colega que disse que até podíamos brincar com a expressão ‘casos bicudos’”, lembra Nuno Pessoa Gil.

Estava encontrado o título: Ornitorrincos Psiquiátricos – Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos. “Este livro, inspirando-se diretamente nas idiossincrasias do ornitorrinco, pretende descrever algumas entidades nosológicas psiquiátricas que são atípicas, quer pela sua heterogeneidade, quer pela frequência incomum, quer por se tratar de entidades perdidas com o advento dos mais recentes manuais de diagnóstico, mas que, no entanto, psiquiatras mais experientes continuam a reconhecer e a diagnosticar nas suas consultas”, refere David Teixeira.



Simular ou produzir sintomas de uma doença

“Às vezes, perguntam-me se este é um livro para o leitor comum. Penso que ele poderá achar graça a algumas das temáticas e à extravagância de certas síndromes. Mas admito como mais provável que haja médicos de outras especialidades atraídos por alguns dos conteúdos. Lembro-me, concretamente, da Dermatologia, que poderá encontrar aqui matérias do seu interesse como, por exemplo, as referentes à tricotilomania, ou aos delírios de infestação, com que o dermatologista, provavelmente, contactará primeiro e depois referenciará ao psiquiatra”, considera Nuno Pessoa Gil.

A este psiquiatra coube abordar neste manual, juntamente com o seu interno do 1.º ano Rui Pedro Vaz, de quem é o orientador, a síndrome de Munchausen, a que nas atuais classificações é dado o nome de doença factícia.

“A pessoa apresenta-se como doente, com sintomas físicos ou psicológicos – existem as duas variantes –, e não tem qualquer ganho secundário com isso. Não procura receber uma pensão ou livrar-se de uma responsabilidade, não visa obter qualquer outro ganho à exceção do simples facto de ser cuidado, de ser o centro das atenções, de assumir o papel de doente”, explica, acrescentando:

“Como se pode imaginar, alguém que faz isso de forma deliberada, e apenas com esse fim, é alguém que só pode estar a sofrer. De facto, a doença factícia, ao contrário da simulação, é efetivamente uma doença psiquiátrica, passo a expressão, de pleno direito.”



Nuno Pessoa Gil esclarece não ser uma patologia tão rara como se possa pensar: “Tive o privilégio de ver dois casos, dos quais falo no livro. Não é identificada e as estimativas podem ser tão amplas como entre 3 a 30%.” Mas não hesita em alertar que “não são dados que possam ser muito fidedignos porque, no limite, não há médico tão enganado como o psiquiatra”.

“Cingindo-nos até a paradigmas de doença mental grave, aquilo que as pessoas podem entender como loucura acaba por ser relativamente fácil de simular!”, avisa Nuno Pessoa Gil.

17 autores e 13 capítulos

Editado pela Lidel, com o patrocínio do laboratório Jaba Recordati e coordenado por David Teixeira e Nuno Pessoa Gil, Ornitorrincos Psiquiátricos – Casos Bicudos e Outros Dilemas Diagnósticos tem 250 páginas e 13 capítulos, cujo conteúdo é assegurado por 17 autores:

Médicos internos:  Alberto Marques, Ana Lúcia Costa, Bruna Melo, Carla Alves Pereira, David Teixeira, Joana Rita Martins, João Brás, Rui Moreira de Sousa e Rui Pedro Vaz.

Especialistas: Ana Isabel Oliveira, Ana Pinto Costa, Elsa Monteiro, Nuno Alves da Cunha, Nuno Pessoa Gil, Sandra Borges, Sofia Ribeiro Pereira e Tânia Casanova.

De referir que coordenadores e autores decidiram prescindir de quaisquer valores associados à venda do livro, revertendo os mesmos para o CHTV. Na altura desta decisão, o objetivo era que a verba obtida fosse destinada à aquisição de equipamentos de proteção individual. Agora, o CA decidirá onde empregar esse valor.

A apresentação do livro pela Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos realiza-se hoje, pelas 19h00, vai decorrer online e conta com a intervenção de Jorge Humberto Silva, diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do CHTV, bem como de Ana Gaspar (Editora Lidel), além dos dois coordenadores.

O evento será transmitido através da plataforma digital Zoom e na página de Facebook da SRCOM.



A notícia sobre o livro "Ornitorrincos Psiquiátricos" pode ser lida na próxima edição do jornal Hospital Público.