Opinião
«A saúde oral no SNS vive tempos conturbados»
Manuel L. Nunes
Médico dentista, ULS de Castelo Branco. Prof. Epidemiologia Geral e Saúde Comunitária, UBI. Docente e membro da CC do Mestrado de Gestão de Unidades Saúde, UBI. Membro do Centro Académico e Clínico das Beiras
A saúde oral vive tempos conturbados. Em Portugal, trata-se de um domínio que mais parece uma manta de retalhos disforme (eterna repetição), onde campeia à solta uma caquistocracia inconsciente que não faz – talvez porque não sabe ou porque não é conveniente – mas também não deixa fazer! É o retrato daquela velha máxima portuguesa do “nem dança nem sai da pista”. Sobrevém a anarquia. Cada um faz como lhe apetece, numa lógica que o “achismo” permite! De norte a sul do país, não é possível encontrar um padrão organizativo dos cuidados de saúde oral. A tónica é a de todos quererem mandar. Todos mesmo! Sobretudo quando se trata desta área da saúde.
É verdade também que não vale a pena fazer o exercício de planeamento que já era urgente há anos atrás, simplesmente porque não se conhece a realidade sobre a qual se pretende planear. Os últimos dados oficiais conhecidos a nível nacional remontam a 2014. Decorre, neste momento, o ano de 2025. Certamente que algo mudou entre 2014 e 2025 e não se pode planear em 2025 tendo por sustentação a realidade de 2014. Seria um erro crasso, um erro vergonhoso, a cobrir de ridículo as nossas instituições.
O Serviço Nacional de Saúde foi, há pouco tempo, organizado em Unidades Locais de Saúde. Algumas já existiam antes (ainda está por explicar porque não se avançou para Sistemas Locais de Saúde). A nível nacional, contamos com o Ministério da Saúde e os seus ramos: a Direção-Geral da Saúde e a Direção Executiva do SNS.
Sucedem-se as orientações e as contra-orientações, as afirmações e os seus opostos e até as desautorizações, pasme-se! Tudo isto deixa os peões do terreno – aqueles que dão a cara ao Povo e “emprestam o peito às balas” -- numa situação de enjoo muito pouco confortável!
Desde logo, seria conveniente definir, de forma clara, quais são as competências de cada um dos atores que se movimenta neste palco, seja a nível nacional, seja a nível local. Até agora, apenas foram tentados alguns ensaios.
É ainda urgente saber se o Programa de Saúde Oral é ou não prioritário. De há muito tempo a esta parte se ouve dizer que a saúde oral é uma prioridade dos governos. No entanto, visitada a página da Internet da Direção-Geral da Saúde, a saúde oral é apenas mais um programa, não constando dos programas prioritários. É bom que se entendam.
Manuel L. Nunes
É urgente saber se o Programa de Saúde Oral é ou não prioritário.
A nível local, no que respeita aos médicos dentistas, a sua função é meramente assistencial, dentro de um gabinete. O acompanhamento da produção, em termos de consultas e tratamentos, não é claro se pertence à DGS ou à Direção Executiva.
Da mesma forma, não é claro se a produção, na área preventiva, pertence à Saúde Oral como um todo, à Higiene Oral, à Saúde Pública ou às UCC (no que respeita à Saúde Pública, o Dec-Lei 286/99, de 27 de julho, atribui-lhe várias competências – como se os recursos humanos fossem infinitos -- dentro dos sistemas locais de saúde; em Portugal, a saúde não evoluiu para sistemas locais, mas para ULS, e pretender que ambas as situações sejam sinónimas é manifesta ignorância ou a expressão de outros interesses. A legislação é trapalhona, necessitando de uma revisão).
Estes dois assuntos dariam, se houvesse disponibilidade, para escrever um tratado de gestão na área da saúde oral.
Entreguem a saúde oral a quem sabe de saúde oral (é surreal pensar que já foi coordenada por informáticos, técnicos superiores de Imagiologia…)! Em Portugal, a saber de saúde oral existem os médicos estomatologistas, os médicos dentistas e os higienistas orais. Goste-se ou não, têm que se entender em benefício das populações que dizem pretender servir. Não querendo entender-se, apenas poderão contribuir para o estabelecimento do burnout em cada uma das classes, com prejuízo dos que deveriam ser os beneficiários do seu trabalho: os utentes do SNS.
Com o virar da página a nível da Direção Executiva do SNS e com o silêncio que se instalou, após a saída de Fernando Araújo, sobre os Serviços de Saúde Oral, mantém-se o que, tradicionalmente, se costuma encontrar neste país: médicos estomatologistas nos hospitais, médicos dentistas e higienistas orais nos centros de saúde, embora seja possível encontrar cada um destes profissionais nas organizações hospitalares e nos centros de saúde.
A título organizativo, encontramos, em Portugal, médicos dentistas e higienistas orais integrados em unidades de Saúde Pública, em URAP, em unidades de Saúde Oral, em serviços de Estomatologia e em serviços de Medicina Dentária. Há para todos os gostos. Começam também a surgir, não se sabe com que tipologia organizacional, os serviços de Saúde Oral.
Embora o Dec-Lei 28/2008 não tenha sido revogado, é possível assistir à extinção das URAP e dos ACES nos Cuidados de Saúde Primários. Talvez por conta do Dec-Lei 102/2009, de 11 de maio, que adianta, no seu Art.42.º-A: “Os centros de saúde integrados em unidades locais de saúde seguem, com as necessárias adaptações, o regime de organização e funcionamento previsto no presente decreto-lei, devendo refleti-lo nos respetivos regulamentos internos.” Assim sendo, é possível criar novas unidades funcionais nos centros de saúde, tendo por base a alínea f do n.º 1 do Art.7.º do Dec-Lei que cria os ACES e que, até ao dia de hoje, não foi revogado.
Embora da Direção Executiva do SNS tenham saído orientações para a formação de serviços de Saúde Oral, certo é que não foi produzida legislação sobre o assunto. Assim, para que se possa acabar com a confusão existente, mantenham-se os serviços de Estomatologia nos hospitais e criem-se as unidades de Saúde Oral nos Cuidados de Saúde Primários. Determine-se que ambos devem trabalhar em estreita colaboração, em benefício dos utentes do SNS.
A Unidade de Saúde Oral criada em 2018 na Unidade Local de Saúde de Castelo Branco poderia servir de base para, melhorando, criar outras unidades a nível do país (Projeto-Piloto-SO-ULSCB-total.pdf)
Já agora, permita-se uma última recomendação: cumpra-se a Portaria n.º 430/2023, de 12 de dezembro, nomeadamente os Art.s 18.º e 19.º. Passa a ideia de que foram escritos apenas para ficarem bonitos no papel.