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Opinião

Comunicação em tempo de pandemia: «As garantias repetidas muitas vezes»


Miguel Guimarães

Bastonário da Ordem dos Médicos



Ao longo do último ano e três meses de pandemia, se nos focarmos apenas no discurso oficial, verificamos que houve garantias que foram ditas e repetidas várias vezes. Foco-me em duas que, em nosso entender, constituíram erros de comunicação, com consequências graves para os cidadãos.

A primeira foi a ideia que se quis dar de que o Serviço Nacional de Saúde (onde foi desenvolvido um trabalho notável que nos honra a todos como país) era infinitamente elástico, com um potencial de camas para resposta à pandemia que era sempre capaz de acompanhar as ondas pandémicas, mesmo nos piores picos.

A segunda ideia perniciosa esteve, e continua a estar, na mensagem que se transmite de que apenas a atividade considerada não urgente ficaria para trás, pelo que os doentes mais graves e de áreas sensíveis – como a Oncologia, a título de exemplo – nunca ficariam sem uma resposta em tempo útil.

O foco noticioso e as conferências de imprensa continuam a dar primazia ao número de novos casos de covid-19 e ao consequente impacto nos internamentos em Enfermaria e em Cuidados Intensivos. É evidente que esses serão sempre valores a acompanhar. Mas o foco no SARS-CoV-2 não nos pode fazer desfocar o resto, sobretudo quando o resto é tanto e quando uma garantia, por muitas vezes que se repita, não é obviamente uma verdade.
 
O Movimento Saúde em Dia, que a Ordem dos Médicos constituiu juntamente com a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, com o apoio da Roche, tem vindo a congregar e a analisar o impacto das opções políticas feitas durante a pandemia em todos os outros doentes. O cenário, não há outra forma de o dizer, é grave, preocupante e merece um plano de ação forte para recuperarmos tudo o que ainda for possível recuperar.

É por isso que a Ordem dos Médicos tem insistido em várias medidas e na necessidade de uma nova matriz (Indicador de Avaliação da Pandemia) que integre diferentes indicadores parciais e que seja mais equilibrada para o acesso de todos a cuidados de saúde em tempo útil.

Durante o primeiro ano de pandemia todas as linhas de atividade foram afetadas – e não negamos que houve uma necessidade de adaptação que é perfeitamente compreensível perante uma emergência como a que vivemos, mas que foi muito para lá do razoável, com a tutela ae scusar-se a ouvir quem está no terreno.

Os médicos de família foram infinitamente desviados para o acompanhamento aos doentes com covid-19 (e é bom lembrar que cerca de 96% dos casos foram acompanhados fora dos hospitais).

Já nas unidades hospitalares, com recursos humanos e espaços limitados, nunca foi suficientemente transparente a mensagem de que por cama covid aberta uma cama para não covid deixava de estar disponível.

Todos os médicos fizeram um trabalho extraordinário nas suas áreas de atuação e a resiliência e capacidade de adaptação são de saudar, mas há naturalmente linhas vermelhas ultrapassadas, com prejuízo para os profissionais de saúde e para os doentes. Um médico não se forma num par de meses, como é, aliás, possível ver neste número do Hospital Público, que nos conta como estão a terminar a sua formação, iniciada em 2017, os primeiros especialistas da nova especialidade de Medicina Intensiva.


Miguel Guimarães

O resultado das opções políticas do último ano traduziu-se numa brutal quebra de acesso. Nos centros de saúde as consultas médicas presenciais caíram 46%. Nos hospitais a quebra nas consultas foi de 13% (mas o Portal da Transparência não nos permite desagregar os contactos telefónicos simples das consultas presenciais).

As urgências caíram 40%, com valores de redução muito significativos nos doentes com prioridade vermelha, laranja e verde, isto é, nos mais graves. Já as cirurgias sofreram uma quebra de 25% e foram feitos menos 29 milhões de exames complementares de diagnóstico e terapêutica.

Estes números são suficientes para percebermos que é absolutamente impossível e falso que a pandemia apenas tenha atrasado cuidados de saúde de doentes que podem esperar por uma resposta.

A título de exemplo, partilho dados relacionados com a Oncologia e que antecipam um verdadeiro tsunami nesta área. Relativamente ao porgrama de rastreios oncológicos, registaram-se menos 21% de mulheres com registo  de mamografia nos últimos dois anos (menos 169 mil), menos 12% de mulheres com colpocitologia atualizada (menos 140 mil) e menos 7% de utentes inscritos com rastreio do cólon e reto efetuado (menos 125 mil).

Estes valores traduzem-se, naturalmente, em muitos doentes “transparentes”, que não sabemos quem são e que, por isso mesmo, não figuram nas listas das consultas e cirurgias hospitalares por fazer.

Infelizmente, há muitos mais exemplos. Na diabetes, área em que Portugal já tinha um complexo caminho a percorrer, a incidência de novos casos caiu 26%. Não sendo possível uma melhoria de um ano para o outro numa doença associada a estilos de vida, isto significa que vamos reencontrar estas pessoas mais tarde, mais doentes e com mais sequelas.

Mas mesmo para quem o sistema conhece o impacto também se fez sentir: os doentes inscritos com diabetes com exame dos pés realizado reduziram-se 34%, com menos 210 mil exames feitos no primeiro ano da pandemia. Também a proporção de doentes diabéticos com exame oftalmológico teve uma quebra de quase 20%.

Uma sociedade moderna tem de ser regida em torno da verdade, ainda mais quando estamos perante uma pandemia que atenta contra a vida de muitos de nós. É essencial que a política não saia ainda mais desacreditada de uma crise que vai exigir mais das lideranças para revitalizar a saúde, a economia, a cultura , etc.

Porque, não nos enganemos, como dizia Galileu Galileu, a verdade é filha do tempo e não da autoridade – e a retrospetiva desta pandemia vai deixar más lembranças das opções, em particular de comunicação.



O artigo pode ser lido no jornal Hospital Público.

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