«As ULS 2.0 são uma oportunidade imperdível para reforçar o desempenho do SNS»
Volvidos 4 meses da entrada em funções da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, é visível uma intenção de reforma, particularmente no que respeita ao modelo de organização das entidades prestadoras de cuidados. A aposta parece ser na retoma do processo de integração vertical de cuidados de saúde, através da criação de um novo conjunto de Unidades Locais de Saúde (ULS).
A integração vertical de cuidados pode contribuir para a melhoria dos cuidados prestados, para melhorar a experiência do doente e para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde. A evidência é clara e abundante, em múltiplos estudos que analisaram processos de integração em sistemas de saúde de todo o mundo. Isto é claro e inequívoco, e cria a necessidade de caminharmos nesse sentido, isto é, no sentido de promover a integração de cuidados.
Xavier Barreto
Dito isto, importa realçar 4 pontos que deverão ser tidos em conta neste processo de integração de cuidados:
1 – Nos processos de integração de cuidados, a dimensão mais importante é a integração clínica. Todas as dimensões são relevantes (informação, financeira, normativa, sistémica), mas aquela que mais contribui para a melhoria do desempenho é, claramente, a integração clínica.
Mesmo que todas as restantes dimensões se mantivessem inalteradas, bastaria a melhoria da integração clínica para que os resultados dos doentes tratados por esse binómio Centro de Saúde/Hospital melhorassem consideravelmente. Diria mesmo que se porventura um centro hospitalar e os ACES da sua área de influência promovessem um processo de integração clínica, provavelmente atingiriam parte significativa da melhoria de desempenho associada à integração de cuidados, mesmo sem a tutela de uma gestão comum.
Quer isto dizer que as ULS são um mau modelo de organização de cuidados? Naturalmente que não, até porque acredito que uma liderança única poderá favorecer o processo de integração.
2 - Existem guiões bastante detalhados, e pensados para a realidade portuguesa, sobre como pode esta integração ser prosseguida. Destaca-se o relatório do grupo de trabalho criado em 2013 para a “Definição de proposta de metodologia de integração dos níveis de cuidados de saúde para Portugal Continental” e coordenado pelo Prof. Doutor Rui Santana.
O relatório propõe um roteiro para a integração de cuidados, elencando as medidas e o rationale para a sua implementação, nas várias dimensões em causa:
Dimensão Clínica (introdução do conceito de gestor do doente, criação de um sistema nacional de gestão de referenciações em saúde, aplicação de normas, guidelines e protocolos clínicos), Dimensão Financeira (incentivos conjuntos: aplicação da unidade de pagamento capitação, desenvolvimento e aplicação de um sistema de custeio por utente)
Dimensão Administrativa (uniformização e centralização de procedimentos administrativos, formação específica em integração de cuidados de saúde, incentivar a criação de um espaço de gestão de conhecimento sobre integração de cuidados de saúde – investigação)
Dimensão Sistémica (Implementação de estruturas organizacionais integradas, planeamento estratégico numa perspetiva de integração, reforço de uma cultura organizacional). Mais uma vez se realça: o mais importante é a integração clínica.
3 – É preciso afastar o receio da criação de um sistema mais “Hospitalocêntrico”. Num processo de integração bem conseguido, deveria deixar de fazer sentido continuar a segmentar o SNS em “níveis de cuidados”. O resultado final seria a criação de percursos clínicos consensualizados e participados por diferentes entidades prestadoras de cuidados, numa prestação harmoniosa e integrada, em função das necessidades do doente.
Seriam equipas multidisciplinares participadas por diferentes profissionais e especialistas, não necessariamente condicionadas à clássica divisão entre cuidados primários e cuidados hospitalares. Mas nada impede que esse modelo possa conviver com a reforma em curso nos cuidados primários, ainda que garantindo sempre um alinhamento entre estratégias e objetivos dos diferentes prestadores de cuidados.
4 - A integração de cuidados não pode subsumir-se à clássica organização por níveis dentro do nosso sistema de saúde: cuidados primários, hospitalares e continuados. Tem de ir muito para além disso, integrando todos aqueles que possam contribuir para o percurso do doente: farmácias, setor social e privado, associações de doentes, poder autárquico e todas as instituições de base comunitária que possam contribuir para o bem-estar dos cidadãos.
Unidos em função de percursos assistenciais integrados e suportados num sistema informático que permita a partilha de informação clínica relevante e a visualização do percurso do doente em cada momento. Sem se cumprir esta condição, sem se criar este ecossistema de base comunitária (também chamado de sistema local de saúde), a integração de cuidados ficará sempre aquém do seu potencial alcance.
A nova vaga de ULS é uma oportunidade para o Serviço Nacional de Saúde. É uma oportunidade para que o SNS se reorganize, melhorando o serviço que presta aos cidadãos portugueses. Para isso, é fundamental que as novas ULS aprofundem o seu modelo de integração de cuidados, procurando ir para além do conseguido pelas atuais ULS. Não se entenda nisto qualquer crítica às atuais ULS. Num contexto de escassez de recursos e de séria limitação à sua autonomia de gestão, têm feito um trabalho absolutamente notável e meritório.
Mas é preciso ir mais longe. É necessário criar um novo modelo de ULS, em que todos os fluxos de doentes sejam reorganizados em percursos assistenciais integrados. Em que os gestores de caso se tornem a regra e não a exceção. Um novo modelo de ULS que integre todas as instituições que podem contribuir para o bem-estar dos cidadãos, criando um verdadeiro ecossistema de saúde que coloque ao serviço das pessoas todos os recursos do sistema. Que articule o setor da Saúde com o setor Social, em função do melhor interesse de quem nos procura.
As ULS 2.0 são, por isso, uma oportunidade imperdível para reforçar o desempenho do Serviço Nacional de Saúde, assim as saibamos criar e moldar à luz da melhor evidência.
O artigo pode ser lido na próxima edição do jornal Hospital Público.