Melhor artigo científico na área cardiovascular: Jennifer Mâncio vence Prémio AIDFM-CETERA 2023
"Esta conquista é o reconhecimento da qualidade da equipa de investigação do Centro de Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho e Faculdade de Medicina do Porto, mas tem muito de mim: reflete a minha criatividade e perseverança." A explicação é dada por Jennifer Mâncio Silva, investigadora do Centro de Desenvolvimento & Investigação Cardiovascular (RISE & UnIC) da Faculdade de Medicina do Porto e Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
A cardiologista foi a vencedora da 6.ª edição do Prémio AIDFM-CETERA, anunciada no decorrer do XIII Congresso de Novas Fronteiras em Medicina Cardiovascular 2023, que decorreu de 24 a 26 de fevereiro.
Em entrevista à Just News, Jennifer Mâncio Silva esclarece o que significa para si esta conquista, fazendo questão de não esquecer o contributo de todos os membros da equipa, e explica os elementos diferenciadores da investigação que liderou. Mas não só. Também em termos pessoais, a investigadora partilha o que projeta para o seu futuro.
O prémio é uma iniciativa da CETERA, Contract Research Organization (CRO) Académica fundada em 2013 e um departamento autónomo da Associação de Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina (AIDFM), uma associação que promove a investigação biomédica na Faculdade de Medicina Universidade de Lisboa desde 1995.
Jennifer Mâncio Silva
Just News (JN) - Como resume o seu trabalho?
Jennifer Mâncio Silva (JMS) - No trabalho que publicámos na European Heart Journal-Cardiovascular Imaging e que foi agora premiado como a melhor publicação na área cardiovascular pela CETERA, desenvolvemos um modelo de inteligência artificial para identificar o risco individual de fibrilação auricular (FA) no pós-operatório de cirurgia cardíaca.
A FA é a complicação mais comum após cirurgia cardíaca que prejudica o prognóstico a curto e longo prazo, prolonga a hospitalização e aumenta os custos associados a saúde. Contudo, não existem atualmente estratégias personalizadas para deteção dos doentes com maior risco de desenvolver FA nem de prevenção e tratamento específicos.
Neste trabalho, testámos a hipótese de que uma caracterização fenotípica detalhada da gordura epicárdica por análise de radiomics da tomografia computadorizada pré-operatória permite identificar os doentes com maior risco de desenvolver FA no pós-operatório. Análise de Radiomics (ou radiomics) permite extrair milhares de características das imagens obtidas na practica clínica através da aplicação de fórmulas matemáticas complexas que derivam a distribuição do sinal, as propriedades geométricas e a textura do tecido e tem o potencial de captar as suas propriedades biológicas.
Não envolve custos adicionais e apenas optimiza toda a informação que a imagem contêm ao nível da microestrutura do tecido e que não é visível a olho a nú. Um dos desafios da Radiomics e Machine Learning é a interpretabilidade e explainabilidade destas variáveis (pouco intuitivas) e dos modelos treinados para detectar doença.
Neste trabalho, o facto de termos amostras de gordura epicárdica de humano colhida durante a cirurgia cardíaca permitiu correlacionar as características da gordura epicárdica na tomografia computadorizada com as as proteínas mais abundantes nos doentes que desenvolveram FA em comparação com as aqueles que se mantiveram em ritmo sinusal.
Mostrámos que nos doentes que desenvolveram FA, a gordura epicárdica apresentava predominio de zonas de elevada intensidade de sinal e uma textura heterogenea. Estas áreas de maior atenuação e heterogenidade da textura correspondiam a abundância de proteínas pro-inflamatórias, pró-trombóticas e menor proteção celular contra a lipotoxidade.
A assinatura de radiomics da gordura epicárdica permitiu distinguir correctamente doentes que desenvolveram FA no pós-operatório versus ritmo sinusal com uma acuidade de 73% e uma AUC (Area under the curve) de 0.80 (IC 95%: 0.68-0.92), o que é promissor do ponto de vista da translação para a prática clínica.
Graças aos progressos nas técnicas de imagem cardiovascular, o Cardiologista pode hoje escolher uma combinação exclusiva das modalidades de imagem que melhor servem o interesse do seu doente. Esta diversidade e complexidade de metodologias, tornou o diagnóstico por imagem mais exigente para os sistemas de saúde porque requer profissionais qualificados e maior investimento financeiro.
Na minha perspectiva o desafio no futuro será “com pouco, fazer muito” e chegar ao máximo de doentes possível. Aplicação de inteligência artifical para a extração automática de características da imagem ou reconhecimento de padrões por técnicas de deep learning tem o potencial de rentabilizar os dados de imagens acessiveis e de baixo custo como o electrocardiograma, a radiografia do tórax e o ecocardiograma.
O nosso grupo tem vindo a trabalhar para consolidar o desenvolvimento destes modelos em segundos com o obejctivo de minimizar a exposição ao contraste iodado e radiação ionizante, servir como método de exclusão rápida de doença em qualquer seviço de urgência e facilitar a seleção de doentes para exames mais complexos como a angiografia coronária ou a resonância magnética cardíaca. O nosso objectivo maior é reduzir o burden e os custos sobre os serviços de saúde e a desigualdade no acesso a estas técnicas de imagem especializadas.
JN - Há quanto tempo está em Londres e até quando vai lá ficar.
JMS - Saí de Portugal no início de 2017 quando fui selecionada para um Post-doctoral Research Fellowship em Tomografia Computadorizada Cardíaca na Universidade de Oxford. Na altura, estava a concluir a minha tese de doutoramento com foco no tecido adiposo epicárdico e na sequência tive a oportunidade de continuar a trabalhar nesta área (gordura epicádica e perivascular) no grupo liderado pelo Professor Charalambos Antoniades no projecto CRISP-CT que viria a ser publicado na Lancet em 2018.
Neste artigo de referência, mostrámos que um aumento da atenuação do tecido adiposo pericoronário avaliado através do Fat Attenuation Index reflete inflamação coronária e serve para prever a incidência de eventos major: esta evidência foi desenvolvida e validade numa coorte com >4000 individuos que realizaram angiografia coronária por tomografia computadorizada em Erlangen e Cleveland.
Em 2018, tive um curta passagem pela Circle Cardiovascular Imaging, que é uma empresa de software de imagem usada para pós-processamento de ressonância magnética cardíaca e tomografia computadorizada e que foi essencial para eu entender os passos por detrás do desenvolvimento de um software para análise de imagem.
Em 2019, passei na entrevista para um Post-doctoral Research Fellowship em Ressonância Magnética Cardíaca na Harvard Medical School & Beth Israel Deaconess Medical Center liderado pelo Professor Reza Nezafat; viver em Boston foi uma experência incrível que me permitiu desenvolver competências na área da engenharia biomédica nomeadamente na aplicação de Inteligência Artifical (Machine Learning) e Radiomics para construir modelos personalizados de deteção de fibrose cardíaca por ressonância mas sem uso de contraste (gadolinium) em doentes com Cardiomiopatia Hipertrófica.
Em plena pandemia e com o processo do Brexit a dificultar o regresso ao Reino Unido, decidi não prolongar a minha estadia em Boston e mudei-me para o Barts Heart Centre em Londres onde estive até ao final de 2020. Desde então, tenho trabalhado para consolidar a minha experiência em Imagem Cardiovascular.
Trabalhei no Royal Brompton Hospital (Critical Care & Perioperative Echocardiography), St Georges University Hospitals (Stress Echocardiography), St. Thomas Hospital & King´s College of London (Cardiac Magnetic Resonance Imaging) e até ao final deste ano, espero estar acreditada em todas as modalidades de imagem cardiovascular incluindo Ecocardiografia transtorácica, transesofágica e de stress, Tomografia computadorizada e Medicina Nuclear e em Ressonância Magnética Cardíaca.
O meu objectivo a médio prazo, é trabalhar em Portugal e no Reino Unido como médica e como investigadora. Não vejo que seja possível mudar-me definitivamente para Portugal no próximo ano (por exemplo) mas não excluo essa hipotese, dependendo do projeto.
JN - Voltando atrás no tempo, quais os motivos que a levaram a seguir Medicina e porquê especificamente Cardiologia?
JMS - Nasci em Paris a 03 de Fevereiro de 1983. Sou filha de emigrantes de Viana do Castelo, de onde a emigração para França era muito comum na década de 70. Apesar de eu praticamente ter vivido sempre em Portugal (tinha menos de 2 anos de idade quando os meus pais regressaram definitivamente a Viana), é óbvio que o meu percurso e escolhas profissionais refletem a curiosidade e determinação dos meus pais e de qualquer emigrante em qualquer parte do mundo que decide re-começar do zero muitas vezes. Ter escolhido Medicina foi um escolha natural e necessária.
A minha natureza é analítica/científica o que restringuiu as minhas escolhas à área da sáude; na altura, a educação em Portugal era muito compartimentada e tendo-se escolhido uma área era praticamente impossível explorar outras áreas. Em 2001, fui admitida na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto com média de 19.43 valores e terminei a licenciatura em 2007 com média de 17 valores.
Fui interna de Cardiologia no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia de 2010 a 2015 (Orientador: Dr Marco Oliveira) sob a liderança do, carismático e inegualável, Dr Vasco Gama Ribeiro. Em 2013, comecei o meu doutoramento (Orientador: Professor Nuno Bettencourt) com o projecto EPICHEART (NCT03280433) que foi financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia (Bolsa João Porto).
Hoje, sei que poderia ter escolhido ser engenheira mas adoro ser médica e encontrei na imagem médica uma área de interface que me permite conciliar a medicina e a engenharia. Estou numa fase da vida em que me sinto muito confortável com as escolhas que fiz. Esforcei-me por respeitar a minha personalidade e seguir o fluxo do que faço naturalmente bem e sem “machucar” muito. Só concordo com o “No pain, no gain” na medida em que “Pain” significa determinação e empenho.
JN - Quem foi o seu orientador de doutoramento?
JMS - O meu orientador de doutoramento foi o Professor Nuno Bettencourt que é um cardiologista com experiência internacional em Ressonância Magnética Cardíaca e Tomografia Computadorizada. Foi uma simbiose perfeita que serviu que nem uma luva ao meu projeto de investigação e inicio da subespecialização em imagem cardiovascular.
JN - A quem gostaria de agradecer?
JMS - Gostaria de agradecer publicamente aos doentes que aceitarem fazer parte do estudo EPICHEART e aos funcionários do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia que contribuiram para este projecto, em particular, à equipa de Cirurgia Cardíaca que gentilmente colaborou na colheita intra-operatória de material biológico.O sucesso deste trabalho resultou de uma colaboração interdisciplinar entre cardiologistas, cirurgiões cardíacos, biólogos, técnicos de radiologia, nutricionistas e bioinformáticos. Muito obrigada a todos pela colaboração.
Coautores do trabalho:
Jennifer Mancio1,2*, Fabio Sousa-Nunes1,2, Rafael Martins1,3, Mariana Fragao-Marques1, Gloria Conceicao1, Guilherme Pessoa-Amorim1, Antonio S. Barros1, Catia Santa4,5, Wilson Ferreira2, Monica Carvalho2, Isabel M. Miranda1, Rui Vitorino1,6, Ines Falcao-Pires1, Bruno Manadas4, Vasco Gama Ribeiro2, Adelino Leite-Moreira1,3, Nuno Bettencourt1, and Ricardo Fontes-Carvalho1,2
1Department of Surgery and Physiology, Cardiovascular R&D Centre (UnIC & RISE), Faculty of Medicine, University of Porto, Porto 4200-319, Portugal; 2Department of Cardiology, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Vila Nova de Gaia, Portugal; 3Department of Cardiothoracic Surgery, Centro Hospitalar de Sao Joao, Porto, Portugal; 4CNC - Center for Neuroscience and Cell Biology, University of Coimbra, Coimbra, Portugal; 5III: Institute for Interdisciplinary Research, University of Coimbra (IIIUC), Coimbra, Portugal; and 6Department of Medical Sciences, Institute of Biomedicine-iBiMED, University of Aveiro, Aveiro, Portugal