«Crise nos recursos humanos da Saúde em Portugal: soluções urgentes precisam-se!»


Bruno Moreno

Médico de família. Vice-presidente da USF-AN



Portugal enfrenta uma crise complexa no que toca aos recursos humanos na área da Saúde, marcada pela escassez de profissionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS), desequilíbrios na distribuição geográfica e consequente pressão sobre o SNS. Apesar do aumento do número de profissionais de saúde nas últimas duas décadas, o sistema enfrenta desafios que comprometem a qualidade e a eficiência dos cuidados de saúde prestados à população.

Para agravar o cenário, o recente relatório da OCDE - “What do we know about young people´s interest in health carees” revela que o interesse dos jovens nas profissões relacionadas com a saúde (Medicina e Enfermagem) caiu para metade nos países da OCDE entre 2018 e 2022. A Organização Mundial de Saúde (OMS) projeta uma escassez global de 10 a 15 milhões de profissionais de saúde até 2030. Esta escassez global agrava a competição internacional por estes profissionais e desequilibra a balança, tornando particularmente atrativos os países com mais recursos financeiros.

Em Portugal, as reduções salariais, o aumento da carga de trabalho, a deterioração das condições de trabalho, o desinvestimento nas carreiras dos profissionais de saúde, a instabilidade e incerteza na reorganização das estruturas, (ULS, ULS Universitária, ULS PPP SNS24, LASV, USF Modelo C, entre outros) e a dança nas cadeiras, desde o Ministério da Saúde à Direção Executiva do SNS, passando pelos Conselhos de Administração das ULS, tem vindo a afetar negativamente a atração e retenção de profissionais de saúde no setor público, sendo disso exemplo os últimos três concursos para a colocação de médicos de família.

Em maio de 2023 foram ocupadas 32% das vagas abertas em concurso; em 2024 reinventou-se o modelo de concurso, sendo este organizado pelas Unidades Locais de Saúde (ULS) individualmente e o número de vagas preenchidas caiu para 30%; em dezembro de 2024 apenas 28% das vagas foram preenchidas.

Os dados mostram uma baixa taxa de ocupação, particularmente nas zonas mais carenciadas de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, onde em alguns casos as taxas de ocupação são de 20%.

Não basta abrir vagas nestes locais e fechar a entrada de médicos no resto do País. Medidas simplistas como estas cavam ainda mais o fosso do ingresso dos médicos de família no SNS, convidando os colegas à saída do SNS, já se si depauperado. Apesar da promessa da Tutela de promover incentivos à fixação de médicos em zonas carenciadas, a região de Lisboa e Vale do Tejo, com cerca de 70% dos quase 1,6 milhões de residentes em Portugal sem médico de família, não foi na sua generalidade considerada zona carenciada, e particularmente o centro de Lisboa não tem nenhuma vaga carenciada.

As necessidades da população e as expectativas dos médicos recém-especialistas continuam a ser ignoradas mais do que nunca. Estas questões incluem, obviamente, a enfermagem e os secretários clínicos, que são ainda mais afetados do que os médicos, por ausência de concursos periódicos e regulares, aguardando, na maioria das vezes anos, por
mobilidades entre hospitais e USF (mesmo após a integração apregoada pelas ULS).

Consultando o BiCSP, nos CSP, em Portugal, há necessidade, neste momento, de aproximadamente 1035 médicos de família, 340 enfermeiros e 356 secretários clínicos. Há 2372 internos de MGF em formação atualmente. Como atrair mais profissionais e estabilizá-los no SNS?

Soluções urgentes precisam-se!

1. Reorganização dos modelos de trabalho.
Flexibilidade de horário, possibilidade de trabalho a tempo parcial, premiar a dedicação exclusiva. Foco na relação saudável entre vida pessoal e vida profissional.

2. Concursos ágeis, simples, eficazes.
Todas as vagas abertas a concurso devem ficar disponíveis de forma permanente, passíveis de ser preenchidas em qualquer altura até ao concurso seguinte. Deve haver um planeamento estratégico e uma previsão das necessidades, para permitir atempadamente a colocação de profissionais. Deve ser criada uma bolsa de profissionais para colmatar ausências definitivas ou temporárias.

3. Centralização na prevenção da doença, na promoção da saúde e no controlo da patologia crónica, ao invés de concentrar sistematicamente e desproporcionadamente esforços e recursos na abordagem da doença aguda, priorizando a quantidade ao invés da qualidade.

4. Melhoria salarial e revisão das carreiras.
Tornar os salários base mais competitivos face ao setor privado e a outros países europeus. Rever as grelhas salariais para valorizar adequadamente a diferenciação, a antiguidade, as competências e as condições de trabalho mais exigentes. Valorizar a carreira com progressões mais céleres, baseadas no mérito, premiando a atividade científica e, acima de tudo, a atividade assistencial.

5. Otimização das condições de trabalho.
Implementar rácios adequados de profissionais por utente. Limitar o recurso excessivo a horas extraordinárias e trabalho suplementar, tornando-o verdadeiramente excecional e devidamente compensado. Melhorar as condições físicas dos locais de trabalho.

6. Reforço do regime de dedicação plena (tornando-o verdadeiramente atrativo).
Rever o regime de dedicação plena para que ofereça compensações (salariais, tempo para formação/investigação, ou outras) que justifiquem genuinamente a dedicação plena ao SNS, tornando-o uma opção vantajosa e não apenas uma obrigação.

7. Incentivos à fixação em zonas carenciadas.
Criar pacotes de incentivos robustos (financeiros, fiscais, apoio à habitação, condições de progressão na carreira aceleradas, apoio à família/educação dos filhos) para atrair e manter profissionais em regiões do interior ou outras áreas com reconhecida falta de médicos, enfermeiros e secretários clínicos. Adaptação da Lei das USF no caso de USF Rurais ou USF multipolo, com o objetivo de atrair profissionais em contextos variados e mais desafiantes.

8. Investimento em formação contínua e desenvolvimento profissional.
Garantir tempo protegido e financiamento para formação contínua, especialização, investigação e desenvolvimento de competências.
Apoiar a participação em congressos e a publicação científica. Criar regras claras para o desenvolvimento académico e de investigação ligado à prática clínica no SNS.

9. Redução da burocracia e da carga administrativa e agilização da atividade.
Simplificar processos administrativos e investir em sistemas informáticos eficientes e interoperáveis (como um processo clínico eletrónico verdadeiramente funcional e utilização de IA) que reduzam o tempo gasto em tarefas não clínicas e otimizem atividades clínicas (transcrição automática da consulta para o registo ou carregamento automático dos resultados de todos os meios complementares de diagnóstico no processo clínico).

10. Melhoria da gestão e da liderança.
Promover modelos de gestão mais participativos, transparentes e focados no bem-estar das equipas. Investir na formação em liderança e gestão de pessoas para os cargos de chefia e coordenação. Fomentar uma cultura organizacional de respeito, reconhecimento e trabalho em equipa.


11. Reforço de recursos humanos e materiais.
Dotar as unidades de saúde com o número adequado de profissionais (incluindo assistentes operacionais e outras profissões da saúde, para além de médicos, enfermeiros e secretários clínicos) e com os equipamentos, materiais e infraestruturas necessários para prestar cuidados de qualidade e trabalhar em segurança.

12. Estabilidade do modelo organizacional.
Para que os profissionais se identifiquem com a Equipa e com os processos assistenciais, é necessário um modelo organizativo com provas dadas de melhoria e de verdadeira integração de cuidados. Quando os recursos são escassos, não há margem de erro. Deve ser pensada  uma solução verdadeiramente integrativa e integradora, que valorize os profissionais e, acima de tudo, seja uma mais-valia para o doente. Deve garantir estabilidade, para que haja um verdadeiro investimento e compromisso dos profissionais com o seu sucesso.

13. Aposta clara nas USF Modelo B.
Uma contratualização atempada, justa e adequada. Atribuição de incentivos institucionais. Acima de tudo, a garantia que a sua autonomia organizativa, técnica e funcional é inviolável.
Estas medidas são complementares e exigem vontade política, investimento financeiro sustentado e uma visão de longo prazo para o SNS, suportadas idealmente num consenso político e num pacto de estabilidade da Saúde em Portugal.

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