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Opinião

Impacto da pandemia covid-19 na intervenção precoce na psicose


Ricardo Coentre

Assist. graduado hospitalar de Psiquiatria, H. de Santa Maria (CHULN). Assist. convidado da Clínica Univ. de Psiquiatria e Psicologia, FMUL



A atual pandemia de coronavirus disease 2019 (covid-19) tem tido substancial impacto na vida de biliões de pessoas em todo o mundo. Um dos domínios com consequência negativa da pandemia covid-19 tem sido a saúde mental.

O distanciamento social e o isolamento sugerido ou forçado pelas autoridades nas principais ondas pandémicas tiveram e terão impacto na saúde mental da população em geral. Uma recente revisão sistemática sugere um aumento na prevalência de sintomas pós-stress traumático e depressivos nos doentes com infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2.

A pandemia teve também especial repercussão nos doentes com perturbações mentais graves, que apresentam um risco aumentado de infeção e prognóstico mais reservado, em comparação com a população em geral. Existe uma preocupação sobre o agravamento dos doentes com perturbação mental pré-existente, nomeadamente naqueles com perturbações psicóticas.

Os doentes com doença psiquiátrica pré-existente são particularmente vulneráveis ao stress gerado por uma situação nova nunca vivida, como a pandemia covid-19, e as consequentes condições de confinamento e económicas associadas. Apesar da sua relevância clínica, relativamente ao impacto da infeção SARS-CoV-2 nas perturbações psicóticas, os dados são ainda algo limitados.

Muitos dos trabalhos publicados sobre as consequências da pandemia covid-19 na saúde mental não fazem referência a sintomas psicóticos, talvez por estes dados serem maioritariamente obtidos por questionários autorreferidos. Parece haver um aumento dos novos casos de psicose relacionados com a própria infeção viral, com o tratamento com corticoides e stress psicossocial.

Evidência deste facto tem sido a publicação de diversos e numerosos novos casos clínicos de psicose no contexto da pandemia covid-19. A maioria destes doentes apresenta idade superior à tipicamente encontrada nos primeiros episódios psicóticos e frequentemente com ideação delirante somática relacionada com a covid-19.


Ricardo Coentre

Existe também alguma literatura publicada que demonstra que alguns doentes psicóticos no contexto da pandemia covid-19 interromperam os seus tratamentos ou reduziram a adesão à medicação. Estes trabalhos mostram que durante a pandemia, nomeadamente nos períodos de confinamento obrigatório, ocorreu uma significativa redução das hospitalizações e um aumento da gravidade dos doentes que se apresentaram nos serviços de Psiquiatria após estes períodos.

Os dados evidenciam ainda que as observações nos serviços de Urgência hospitalares caíram de forma considerável durante todo o período da pandemia e de maneira mais expressiva nos períodos de confinamento. O medo da infeção por covid-19 e/ou receio de contribuir para uma maior pressão nos sistemas de saúde por parte dos doentes são apontadas como as principais razões que justificam aquela redução.

Os dados publicados indicam igualmente que não ocorreu importante interrupção dos cuidados de saúde aos doentes psicóticos seguidos em serviços de Psiquiatria, com uma reduzida proporção dos doentes a não terem seguimento nas formas alternativas à presencial, como as tele ou videoconsultas.

Contudo, apesar destes dados positivos, verifica-se que a não adesão à medicação e as consequências socioeconómicas da pandemia terão especial significado no grupo de doentes com o primeiro episódio psicótico e naqueles que estão num período de recuperação do mesmo.

Nos últimos anos, a generalização dos cuidados aos jovens nas fases iniciais das perturbações psicóticas em equipas específicas tem-se generalizado um pouco por todo o mundo. Estes programas de intervenção precoce na psicose visam uma melhoria significativa do prognóstico associado a estas doenças. Os elementos específicos destas equipas incluem a prestação dos cuidados por uma equipa multidisciplinar durante os primeiros anos após o primeiro episódio psicótico.

Estas intervenções incluem tratamento farmacológico, psicoterapia cognitivo-comportamental para a psicose, psicoeducação individual e familiar, emprego protegido e gestão de casos. Como facilmente se compreende, as catástrofes têm um maior impacto nos indivíduos que têm necessidades especiais e poucos recursos, como são aqueles que sofrem ou estão a recuperar de um primeiro episódio psicótico.

Estes doentes são jovens, frequentemente sem a educação formal completa, ou estão nos primeiros anos de trabalho, geralmente ainda residem com os seus pais ou voltaram para a casa destes na sequência da doença. Estes doentes apresentam também alterações no seu funcionamento cognitivo, menor probabilidade de estarem a trabalhar ou integrados na escola e tendem a ter mais reduzido funcionamento social.

Facilmente se compreende que as indicações para distanciamento social para controlo da pandemia, assim como o impacto económico da pandemia covid-19, terão um efeito particularmente negativo nestes jovens, que estão muitas vezes também numa fase de reabilitação, tentando voltar à escola ou ao trabalho e a reestabelecer a sua rede social e ocupacional.

Em adição, a pandemia covid-19 teve também um imediato impacto nos cuidados de saúde mental, nomeadamente nos primeiros períodos de confinamento, com uma mudança dos cuidados prestados de forma presencial para tele ou videoconsultas.

Especificamente em relação às equipas de intervenção precoce na psicose, os dados apontam para uma redução dos contactos com as equipas em situações de crise e de admissões hospitalares, particularmente nos períodos de confinamento.

Alguns trabalhos mostram também que existiu alguma alteração no padrão dos doentes admitidos em hospital. Assim, verificou-se um maior número de doentes com psicose não afetiva e com sintomas psicóticos com temas relacionados com a covid-19.

As novas referenciações às equipas de intervenção precoce na psicose sofreram igualmente uma redução significativa, sobretudo durante os diversos períodos de confinamento. Sendo que as novas referenciações a estas equipas ocorrem maioritariamente através dos serviços de Urgência e dos cuidados de saúde primários, e tendo estes serviços reduzido de forma significativa a sua atividade, fácil é de entender a consequente redução das novas referenciações de doentes psicóticos às equipas especializadas.

Todavia, os escassos trabalhos publicados mostram que ocorreu na maioria das equipas um esforço significativo para manter, sobretudo nos períodos de confinamento, contacto com os doentes já acompanhados. Comunicações através de tele e videoconsultas aumentaram em praticamente todas as equipas.

Alguns estudos apontam até para um aumento da frequência de contactos com os doentes seguidos nestas novas modalidades não presenciais.



Os trabalhos justificam este aumento com a preocupação das equipas em dar algum suporte aos seus doentes em tempos de incerteza e stress adicional devido à pandemia covid-19. Este facto ajuda a explicar, pelo menos parcialmente, alguma menor necessidade de observação nos serviços de Urgência destes doentes.

Todos estes fatores evidenciam que os doentes com primeiro episódio psicótico, ou em recuperação deste, são particularmente vulneráveis aos efeitos deletérios da pandemia covid-19.

Apesar de não existirem ainda estudos publicados, é convicção de muitos especialistas que nos próximos meses se vai assistir a uma maior pressão sobre os serviços de assistência aos jovens com primeiro episódio psicótico, com um aumento significativo das novas referenciações e recorrências dos sintomas psicóticos em doentes previamente acompanhados. Assim, assegurar bons cuidados de saúde mental deverá ser uma preocupação central em qualquer plano de recuperação da pandemia covid-19.

Não obstante a existência de um gap de conhecimento relevante entre a covid-19 e a psicose, os dados disponíveis parecem indicar que as perturbações psicóticas representam uma significativa proporção das consequências negativas psiquiátricas da pandemia covid-19.

A necessidade de avaliação nos próximos meses do padrão de uso das equipas que tratam doentes nas fases iniciais da psicose, nomeadamente no primeiro episódio psicótico, ajudará a esclarecer o impacto da covid-19 nos doentes já seguidos e nas novas referenciações a estas equipas.

Referências:
- The impact of covid-19 on an early intervention in psychosis service. Nandini Chakraborty, Richard Carr, Samuel Tromans. Progress in Neurology and Psychiatry, Vol. 24 Iss. 4 2020; 17-21.
- The need for early intervention for psychosis to persist throughout the COVID-19 pandemic and beyond. B. O’Donoghue, K. O’Connor, A. Thompson, P. McGorry. Irish Journal of Psychological Medicine, Vol. 38, Iss. 3 2021; 214 – 219.



O artigo pode ser lido na edição de novembro/dezembro do jornal Hospital Público

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