Lei da “violência obstétrica” – a posição da Ordem dos Enfermeiros


Luis Filipe Barreira

Bastonário da Ordem dos Enfermeiros



A entrada em vigor da Lei n.º 33/2025, que se propõe combater a designada “violência obstétrica”, representa um passo importante na afirmação dos direitos das mulheres durante a preconceção, gravidez, parto e puerpério.

O seu valor simbólico e político não deve ser ignorado, como a Ordem dos Enfermeiros (OE) já referiu em comunicado, sobretudo numa sociedade que procura, cada vez mais, integrar práticas humanizadas e respeitadoras da dignidade e autonomia das mulheres no acesso aos cuidados de saúde.

Contudo, defender os princípios subjacentes a esta Lei não significa aceitar, sem crítica, a forma como foi elaborada, as soluções adotadas e, sobretudo, as consequências que podem resultar da sua aplicação. A OE tem reiterado o compromisso com os cuidados centrados na pessoa, com base na evidência científica e na relação terapêutica de confiança entre profissionais e utentes. Por isso mesmo, manifestou publicamente a sua discordância com aspetos fundamentais da redação do diploma.

Desde logo, é de lamentar que uma lei com impacto tão direto no exercício da enfermagem tenha sido elaborada sem qualquer auscultação da OE, entidade que regula e supervisiona a profissão. Ao não ouvir a OE, o legislador deixou de fora o contributo de quem tem conhecimento técnico, experiência direta com as mulheres e competência para regular a qualidade e a segurança dos cuidados. Ao mesmo tempo, optou por importar conceitos de outros ordenamentos jurídicos sem uma adaptação adequada, como é o caso da definição vaga e ambígua de “violência obstétrica”, abrindo margem a interpretações subjetivas que poderão, sem motivo, comprometer a atuação dos profissionais do ponto de vista ético.

Este risco é evidente quando se fala, por exemplo, da episiotomia. A OE rejeita qualquer prática feita de forma rotineira – ainda que o conceito de rotina careça, ele próprio, de uma definição clara na Lei – sem base científica ou sem consentimento informado. Contudo, a episiotomia, quando clinicamente indicada e, sendo possível, partilhada com a mulher, é uma intervenção baseada em evidência, realizada para prevenir consequências mais graves. Confundir uso justificado com abuso rotineiro é uma simplificação perigosa, que pode comprometer a segurança da mulher e expor o profissional a penalizações injustas.


Luís Filipe Barreira

Por outro lado, a alteração do termo “plano de parto” para “plano de nascimento” é uma mudança linguística, aparentemente inócua, que retira protagonismo à mulher sobre o seu corpo e experiência de parto. O nascimento acontece com o bebé, mas o parto é vivido pela mulher, no seu corpo, com as suas escolhas e vulnerabilidades. Anular esse protagonismo é contradizer os próprios princípios da dignidade e autodeterminação que a Lei declara querer proteger.

Para além disso, o enquadramento legal sancionatório não é acompanhado da garantia das condições mínimas para o exercício de cuidados de qualidade. Importa recordar que a enfermagem é uma profissão regulada, cujos profissionais estão vinculados a um conjunto de normas legais, éticas e técnicas, e já respondem não só civil e criminalmente perante os Tribunais como também disciplinarmente perante a própria Ordem, quando violam os seus deveres profissionais ou se desviam das boas práticas.

Acresce que não é possível exigir humanização sem garantir mais enfermeiros, com melhores condições de trabalho, tempo adequado para cuidar e autonomia efetiva no desempenho das suas competências. A humanização não se impõe por decreto, constrói-se com investimento no diálogo e respeito mútuo.

Perante este cenário, gostaria de deixar a garantia de que a OE não se vai demitir das suas atribuições e, por isso, reafirma a sua total disponibilidade para contribuir ativamente na necessária revisão desta Lei, com a seriedade técnica e científica que a matéria exige. O que procuramos não é, obviamente, o retrocesso na defesa dos direitos das mulheres, que sempre defendemos, mas sim o avanço para um modelo que proteja quem é cuidado sem expor discricionariamente quem cuida.

A dignidade dos cuidados nasce do equilíbrio entre o respeito pela pessoa e o respeito pelo profissional. E só com esse equilíbrio é possível haver, de facto, cuidados seguros, humanizados e justos para todos.

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