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Opinião

Não há coincidências no SNS


Miguel Guimarães

Bastonário da Ordem dos Médicos



Os últimos anos têm sido particularmente difíceis. E não me refiro apenas aos dois anos da pandemia. Refiro-me sobretudo à crise em que Portugal mergulhou oficialmente na altura da intervenção externa, mas também ao período pós troika, em que o suposto alívio das restrições financeiras não se traduziu numa recuperação do tempo perdido, pelo menos na área da saúde. Foi neste cenário, em que já estávamos praticamente submersos, que mergulhámos no combate a um vírus desconhecido.

Nas crises, como a própria literatura explica, encontramos um propósito e uma força extraordinária para nos mantermos à tona, pelo menos em grande parte do tempo.

Foi o que aconteceu com o SARS-CoV-2, com os médicos e os outros profissionais de saúde a revelarem uma capacidade de trabalho e de resiliência verdadeiramente inimagináveis e que foram cruciais para compensar no terreno a falta de equipamentos e de orientação política.

Tal como na troika, o problema veio a seguir. Fazemos o nosso trabalho pelos nossos doentes. Sempre foi e sempre será assim. É, aliás, a isso que consagramos a nossa vida e que está inscrito no Juramento de Hipócrates. Mas a relação entre o médico e o doente não é uma mera bolha, totalmente alheia ao que acontece em termos de política de saúde e de condições nas instituições hospitalares ou nos cuidados de saúde primários.

Essa relação tem sido protegida, ao máximo, pelos médicos, tentando que a falta de condições nas instalações, técnicas e de carência de recursos humanos, não passem para os doentes. Mas vão passando.

A falta de resposta para alguns problemas, os atrasos, as condições sem dignidade para concretizar alguns procedimentos são todos fatores que nos levam a trabalhar num sofrimento ético que, mais dia menos dia, fica intolerável. Quando a tudo isto se soma o desprezo e o desrespeito do Ministério da Saúde, o SNS desagregase e vai perdendo todos os dias aqueles que o fazem e constroem.

Não há coincidências no que está a acontecer no SNS. Estamos perante uma linha simples de causas e consequências, mas que pelo prolongamento no tempo são de resolução cada vez mais complexa.


Miguel Guimarães

As sucessivas lideranças têm menosprezado o impacto das más escolhas políticas e desprezado o valor único do capital humano, desconhecendo que é cada médico (ou outro profissional), por si só, que faz a diferença no terreno e que abdicar de um aqui e de outro ali é contribuir para enfraquecer um conjunto, uma equipa, e introduzir entropia negativa num circuito bem oleado, ao ponto dos buracos serem agora maiores do que as junções.

Ora veja-se: segundo o Health at a Glance recentemente publicado, Portugal é o país da OCDE onde a remuneração dos médicos mais diminuiu, em termos reais, nos últimos anos. A quebra foi sentida, sobretudo, entre 2010 e 2012. Contudo, a recuperação a que se assistiu depois dessa data foi residual e insuficiente para que o valor auferido em 2019 superasse o de 2010, em termos reais, continuando a ser inferior ao que era dez anos antes.

Podíamos dizer que este é um problema geral numa Europa em crise. Mas não é. A tendência de Portugal é contrária à verificada na maior parte dos países da OCDE, onde a remuneração dos médicos aumentou desde 2010. Além de Portugal, só o Reino Unido, a Eslovénia, a Austrália, a Costa Rica e o México viram os salários dos médicos cair. A lista é encabeçada por Portugal, com a maior perda: 2,2%.

Podíamos pensar que o desinvestimento no capital humano era compensado com investimento direto nos doentes. Infelizmente, nem isso é verdade. E, mais uma vez, não há coincidências, mas razões fortes para a insatisfação de todos.

Apesar do crescimento da despesa pública em muitos países analisados no Health at a Glance, Portugal foi um dos três países da OCDE em que os gastos com a saúde per capita diminuíram em 2019-2020, em comparação com o período compreendido entre 2015 e 2019. A redução foi observada apenas em Portugal, no Chile e na África do Sul.

E, com tudo isto, as necessidades de cuidados médicos não satisfeitas durante a pandemia foram mais elevadas na Hungria e em Portugal, com mais de um terço da população a dizer ter renunciado a um exame médico ou a tratamento durante a primeira onda.

Se perguntarmos ao poder político, o discurso oficial é sempre o mesmo... de que tudo foi feito para... de que não é verdade... de que a culpa é de... e encontram sempre um bode expiatório pela falta de recursos, recorrendo a argumentos falsos e perniciosos, facilmente desmontáveis em todos os casos.

Por exemplo, quem define e decide numerus clausus nas universidades é o Governo, quem define o mapa final de vagas para a formação médica especializada é o Governo, quem define as condições de trabalho, salários e concursos é o Governo. E por aí adiante...

Se não basta o que foi dito, procuremos então respaldo nos relatórios internacionais em que, de resto, Portugal volta a surgir como um dos países com mais médicos per capita, o terceiro a seguir à Grécia e à Áustria em 2019, com 5,3 profissionais por cada mil habitantes.

Mais, Portugal é o 10.º país da OCDE que mais novos médicos forma, mostrando-se a OCDE até preocupada com “estrangulamentos” que este número excessivo pode trazer no acesso a uma especialidade.

Contudo, lamentavelmente, nos últimos concursos para assistente como especialista no SNS, cerca de 40% das vagas ficaram por ocupar e o último concurso para acesso à especialidade até ficou ineditamente com 50 vagas por preencher, num resultado histórico.

Centenas de candidatos preferiram ficar sem acesso a uma especialidade do que continuar num SNS depauperado. Mas a tutela continua a preferir acreditar que são tudo coincidências.



O artigo pode ser lido na edição de novembro/dezembro do jornal Hospital Público. 

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