Opinião

Administração do Hospital Público: «é imperativo rever o quadro de qualificação da gestão»


Alexandre Lourenço

Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)



O Regulamento Geral dos Hospitais, publicado em 1968, é porventura um dos diplomas mais marcantes da organização dos hospitais em Portugal. Ainda hoje, ao lermos este pioneiro documento, vemos a sua influência sobre os regulamentos internos da maioria dos hospitais e sobre as sucessivas leis de gestão hospitalar. Na medida em que foi um documento tão inovador para a época, talvez todas as seguintes sucessivas tentativas de legislar a gestão hospitalar foram incapazes de apresentar-se como vanguarda dos tempos.

O último exemplo é o Decreto-lei 18/2017, de 2 de outubro. Este diploma aprova o mais recente Regime Jurídico e os Estatutos aplicáveis aos hospitais e unidades locais de saúde. Em muitos aspetos, ao invés de acompanhar os progressos internacionais, dá cobertura ao status quo da organização hospitalar. Mesmo ao  nível dos conselhos de administração, ao contrário de qualificar os gestores hospitalares, assenta sobre preconceitos.

Por um lado, mantém a composição limitada a um máximo de cinco elementos, preferindo ignorar a atual dimensão e complexidade de uma grande parte dos centros hospitalares. Por outro, vem exigir que um dos vogais seja proposto pelo membro do Governo responsável pela área das finanças.

Algo sui generis, quando, por definição, todo o conselho é nomeado pelo Conselho de Ministros, sob proposta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Saúde. Ou seja, pelo menos um dos elementos não é de escolha comum. Se um dos maiores desafios dos conselhos de administração será trabalhar em equipa, aqui fica a primeira farpa.

No mesmo diploma: os membros do conselho de administração do Hospital Público, integrado no setor empresarial do Estado, são designados de entre individualidades que possuam preferencialmente evidência curricular de formação específica em gestão em saúde e experiência profissional adequada – preferencialmente. Ou seja, nem sequer é exigida formação específica ou experiência profissional adequadas. Pelo menos, prevê-se que o diretor clínico seja um médico e que o enfermeiro diretor seja um enfermeiro!



Desde 2015, o Global Consortium for Healthcare Management Professionalization, desenvolvido no âmbito da Federação Internacional dos Hospitais, que integra várias organizações governamentais, privadas e académicas, apela urgentemente aos governos e à comunidade internacional para reconhecer que o desempenho e a melhoria da saúde dependem da existência e qualidade da gestão profissional das organizações de saúde, tendo apresentado cinco medidas concretas para serem implementadas ao nível de cada país:

1) Adoção do Diretório de Competências de Gestão em Saúde para informar e alinhar programas de desenvolvimento de gestão de serviços de saúde em todos os níveis pré-graduados e graduados de educação, formação contínua e desenvolvimento profissional;

2) Adaptação e incorporação das competências em sistemas formais de creditação, que devem basear-se em avaliação independente e na evidência de competências demonstradas;

3) Reconhecimento formal da gestão de serviços de saúde como profissão;

4) Implementação de uma carreira de gestão de cuidados de saúde com base no mérito;

5) Reconhecimento das associações profissionais de gestores de serviços de saúde como principais partes interessadas para o diálogo político relacionado com a liderança e gestão em saúde e a promoção da profissão.

É importante relembrar que o Estatuto do Gestor Público (EGP), atualizado em 2012, obriga à celebração de um contrato de gestão com qualquer empresa pública no prazo de 3 meses a contar da designação do gestor público. O desrespeito pelo prazo estabelecido será cominado com a nulidade do ato de nomeação. Nestes contratos, deve prever-se, obrigatoriamente, a demissão do gestor público no caso de a respetiva avaliação de desempenho ser negativa. Ainda, a remuneração dos gestores públicos considera a remuneração fixa e os prémios de gestão.

Contudo, estes prémios podem não ser aplicáveis caso o hospital: não cumpra regular e escrupulosamente as suas obrigações fiscais; não reduza o seu nível de endividamento corrente; não proceda ao pagamento regular e atempado aos seus trabalhadores, fornecedores e prestadores de serviços; não reduza o nível de despesas não necessárias para a realização do seu objeto social e, por esse motivo, passíveis de tributação autónoma; registe prejuízos por dois anos consecutivos.

Corremos agora pelo ano de 2019, e não se entende o atraso na aplicação de uma lei de 2012. Bem sabemos que a prioridade da equipa das Finanças foi colocar em causa a qualidade da gestão, desresponsabilizando-se do menor investimento no SNS em percentagem de PIB e bloqueio da gestão operacional, pelo soberbo nível de centralização e mínimo grau de autonomia.

Mas da Saúde e da Administração Pública espera-se mais. Aplicar o estatuto do gestor público será cumprir o básico. É imperativo rever o quadro de qualificação da gestão de serviços de saúde, passando pela educação e formação especializada, atualização da carreira, processo de recrutamento transparente, avaliação do desempenho, responsabilização e formação contínua.

Melhor gestão, mais SNS.



O artigo pode ser lido no Hospital Público de janeiro.

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