Transplante pulmonar em Portugal: a discreta e insubstituível intervenção do Serviço Social


Fátima Ferreira

Licenciada e mestre em Serviço Social. Assistente social na ULS de São José (Centro de Referência de Transplante Pulmonar). Responsável pela Área de Apoio Social do H. de Santa Marta.



Por ocasião do Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação (20 de julho), vale a pena olhar para além da cirurgia. O que acontece antes e depois de um transplante pulmonar? Em Portugal, o Hospital de Santa Marta – integrado na Unidade Local de Saúde de São José – é o único Centro de Referência nacional para transplante pulmonar.

Atrás das cortinas do bloco operatório, longe das câmaras e da pulsação do momento da cirurgia, existe um trabalho contínuo, exigente e silencioso: a intervenção do Assistente Social.

O transplante começa muito antes da cirurgia

Quando um doente com patologia respiratória grave chega à inevitabilidade do transplante pulmonar não é apenas o corpo que está em causa. A decisão de integrar um doente em lista de espera requer mais do que exames e análises clínicas. A equipa precisa de saber se aquele doente está em condições de atravessar um processo longo, complexo e cheio de incertezas. É aqui que entra o Serviço Social: avaliando, acompanhando e intervindo.

A avaliação psicossocial do doente candidato a transplante pulmonar é uma etapa fundamental e obrigatória. Mais do que verificar se há rede de apoio ou recursos económicos, o assistente social olha para a pessoa no seu todo – fragilidades/problemas, potencialidades, sistema familiar, percurso de vida, estrutura emocional e capacidade de adesão ao tratamento.

O Serviço Social tem assumido um papel essencial neste processo, contribuindo para a compreensão das dinâmicas familiares, sociais e económicas que podem influenciar o sucesso do transplante.




Avaliar para incluir... ou para proteger?

O Serviço Social tem, neste contexto, um papel sensível e determinante: identificar riscos psicossociais que possam comprometer o sucesso do transplante. A intervenção não se resume a facilitar acessos ou encaminhar para recursos – ela integra-se no próprio processo de decisão clínica. Não raras vezes, é o parecer social que traz à luz problemas como isolamento extremo, negligência familiar, consumo ativo de substâncias, condições habitacionais inadequadas, ausência de capacidade funcional ou dificuldades cognitivas que impedem o cumprimento rigoroso da terapêutica pós-transplante.

Mas este papel também é profundamente ético: não se trata de excluir, mas de preparar. De identificar barreiras para, sempre que possível, as mitigar antes da entrada em lista, e de proteger o doente, quando os riscos de um insucesso precoce são maiores do que os benefícios de uma intervenção de alto custo e risco.

Uma intervenção que não termina na alta hospitalar

O Serviço Social não se limita à avaliação inicial. Durante todo o processo – da entrada em lista à chamada para transplante, da hospitalização prolongada ao regresso a casa –, o assistente social está presente, em articulação permanente com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e cuidadores.

A reintegração social e profissional, a adaptação a uma nova realidade física e emocional, a gestão das expectativas e dos medos, a prevenção do isolamento, e o acesso a respostas comunitárias são apenas alguns dos campos onde o Serviço Social atua após a cirurgia. A pessoa transplantada raramente regressa “igual” à vida anterior, e é no redesenho dessa nova normalidade que o apoio psicossocial se torna determinante.


Desafios e zonas de sombra

Apesar da sua centralidade, a intervenção do Serviço Social na transplantação pulmonar em Portugal enfrenta diversos desafios. A inexistência de instrumentos normalizados de avaliação psicossocial, a sobrecarga dos serviços, a escassez de formação específica e a limitada produção científica nesta área tornam a atuação muitas vezes solitária, intuitiva e dependente da experiência individual de cada profissional. Cada caso é avaliado com base na experiência e sensibilidade dos assistentes sociais, o que, embora valioso, pode introduzir subjetividade
nas decisões.

Conclusão: cuidar de pulmões, cuidar de pessoas

No Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação, importa lembrar que cada órgão doado carrega uma segunda oportunidade, mas para que essa oportunidade se concretize é necessário cuidar da pessoa – da sua história, das suas redes, das suas fragilidades.

A intervenção do Serviço Social no transplante pulmonar é uma peça silenciosa, mas fundamental deste processo, porque quando o corpo começa a falhar é o tecido social que segura o que sobra e, muitas vezes, é esse tecido que faz a diferença entre o sucesso ou o insucesso deste recomeço.

Que este dia sirva não só para homenagear os dadores e salvar vidas, mas também para reconhecer os que nos bastidores trabalham todos os dias para garantir que cada vida salva valha, de facto, a pena ser vivida.



Nota: Este artigo de opinião de Fátima Ferreira foi escrito para o Jornal Médico, com publicação na edição de julho 2025.

Imprimir


Próximos eventos

Ver Agenda