Um guia da Saúde para as Eleições Autárquicas


André Biscaia

Médico de família. Presidente da Direção da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN)



Gonçalo Melo

Médico de família. Vogal da Direção da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN)



1.   Saúde como um bem comum

Desde os anos 1970, Portugal tem trilhado o caminho de construção de um sistema universal de saúde, assente no acesso equitativo, atempado e de qualidade. Tem-se conseguido, apesar de Portugal ser um país pobre dentro da União Europeia, uma situação social, em várias áreas e não apenas na Saúde, pelo menos equivalente à média europeia. É o que se pode concluir, não de perceções, mas de dados estatísticos do último Perfil de Saúde do País 2023 da OCDE, como a taxa de desemprego ou a taxa de pobreza relativa, uma ferramenta importante para avaliar o impacto de políticas sociais e económicas na vida das pessoas.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem sido um instrumento essencial nestas políticas públicas, com ganhos visíveis, sobretudo através do reforço dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). A Reforma de 2005, com, entre outras, a criação das Unidades de Saúde Familiar (USF), foi um marco de viragem. A qualidade dos cuidados aumentou significativamente e mantém-se elevada até hoje, conforme demonstram os dados da OCDE. A satisfação da população acompanhou esta melhoria e marca bem a diferença do antes e do depois da Reforma dos CSP de 2005, com a criação das Unidades de Saúde Familiar (USF).

No entanto, persistem desafios (de que os aumentos recentes, ainda que ligeiros, da mortalidade materna e da mortalidade infantil ou a falta de equipas de saúde familiar para toda a população são exemplos) que exigem uma ação coordenada, nomeadamente entre o poder central e o poder local.

2. Melhorar as condições de trabalho no SNS

É urgente melhorar as condições de exercício profissional, promovendo a atratividade e a fixação de profissionais:

•     Redução do número de utentes por médico e enfermeiro e secretário clínico nos cuidados de saúde primários;

•     Digitalização inteligente e interoperável;

•     Desburocratização de processos clínicos e administrativos;

•     Apoio técnico e logístico à atividade clínica;

•     Horários flexíveis e adaptáveis às realidades locais;

•     Incentivos remuneratórios ajustados ao custo de vida de cada região;

•     Reconhecimento formal e remuneração adequada das várias funções de coordenação e chefia;

•     Acesso prioritário a habitação, creches e transportes para profissionais de saúde.

 

André Biscaia e Gonçalo Melo

3.   Papel do poder local: saúde em todos os setores


A autarquia é um agente de saúde pública. Cerca de 80% dos determinantes da saúde estão fora do setor da saúde. Interessam, por isso e em grande medida, ao poder local.

O que pode caber ao poder local, numa visão integrada da Saúde:


A. Promover estilos de vida saudáveis

•     Criação de equipas de preparadores físicos comunitários, integradas com as unidades de saúde;

•     Construção e requalificação de infraestruturas acessíveis para exercício físico;

•     Criação de "passeios da saúde" com sinalética e medição de distâncias;

 

B. Aumentar a literacia em saúde

•     Campanhas regulares para ensinar a descodificação de rótulos, receitas saudáveis e vídeos curtos de literacia;

•     Plataformas municipais de prescrição social digital, integradas com os centros de saúde;

•     Implementação de "embaixadores de saúde" locais (voluntários com formação básica em saúde comunitária para a promoção da literacia em saúde);

 

C. Ajudar a navegar o sistema de saúde

•     Promoção da figura de agentes comunitários de saúde, com função de mediação digital, apoio à marcação de consultas, transporte e adesão terapêutica (que podem, simultaneamente, ter outras funções e coordenar ações com outros setores, da educação, da segurança social, da segurança);

•     Instalação de postos municipais de apoio digital em saúde, com acesso à área do cidadão SNS e MySNS.

 

D. Apoiar a continuidade de cuidados

•     Apoio direto à gestão de doentes complexos através da criação de equipas municipais de gestores de caso (que poderiam, entre outros, gerir a má utilização dos serviços de urgência);

•     Criação de bolsas de cuidadores formais e informais, com incentivo à formação e valorização social;

•     Programas de telemonitorização para idosos isolados, articulados com as equipas de saúde familiar.

 

4. Suplementar e não competir com o SNS

O poder local deve suplementar, e não substituir ou competir com o SNS.

A série “Publicação Ocasional” de maio de 2025 do Conselho das Finanças Públicas -- “O Sistema de Saúde Português em Perspetiva Internacional: Análise Comparativa”-- traz mais uma série de dados abonatórios do desempenho do SNS, mas também aponta uma série de problemas que são reais.

É possível abordar estes problemas com ações locais:

       A. Na saúde mental:

  • psicólogos municipais;
  • grupos comunitários de apoio (por exemplo, nas áreas da ansiedade, da parentalidade, do luto);
  • parcerias com escolas e IPSS para prevenção em saúde mental.

        B. Na saúde oral:

  • consultórios municipais de dentista com acordo com o SNS;
  • programa de higiene oral nas escolas e lares.

        C. Na saúde da visão:

  • consultas de optometria gratuitas;
  • rastreios anuais.


        D. Na reabilitação e funcionalidade:

  • apoio a gabinetes de fisioterapia convencionados e constituição de gabinetes de fisioterapia comunitários com horários pós-laborais;
  • protocolos com ginásios locais e associações desportivas.

       
        E. Nos meios complementares de diagnóstico:

  • apoio à instalação de unidades com contratos que não discriminem utentes com requisições do SNS.

 

5. Apoiar quem trabalha no SNS

As autarquias podem e devem garantir condições que fixem os profissionais no território:

•     Complementos remuneratórios locais para profissionais do SNS (subsídios de risco, produtividade ou deslocação);

•     Acesso a habitação condigna e a preços acessíveis;

•     Protocolos com creches e escolas para acesso prioritário;

•     Apoio logístico (água, luz, gás) no caso de mobilidade profissional forçada;

•     Criação de um Gabinete de Apoio ao Profissional de Saúde, com ajuda na integração local e familiar.

 

6. Pontes para o futuro


O SNS é imprescindível para a sociedade portuguesa e têm de se reforçar as pontes entre níveis de governação, profissionais de saúde e cidadãos.


Para isso, propõe-se:

•     Criação de Conselhos Municipais de Saúde com representação do SNS, autarquia, associações de utentes e sociedade civil;

•     Promoção de orçamentos participativos em saúde;

•     Fomento à criação de Unidades Locais de Saúde participadas (ULS com modelo de gestão partilhado com o poder local e participação dos profissionais de saúde, constituídos em comissões de trabalhadores com maior protagonismo na gestão);

•     Financiamento de projetos-piloto de inovação comunitária em saúde;

•     Criação de um “selo municipal amigo da saúde pública” para distinguir boas práticas na área da saúde.

 

7. Conclusão: uma visão glocal para a saúde


A saúde começa na habitação, nos transportes, no acesso à cultura, no urbanismo e no emprego. O Poder Local é, por isso, central na saúde pública. As eleições autárquicas de 2025 são uma oportunidade para defender uma visão local -- pensamento e ações locais com base nas boas práticas universais e numa estratégia nacional de fortalecimento do SNS.

 

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