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Opinião

«Um Hospital Público com gestão descentralizada e participada»


Alexandre Lourenço

Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)



O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem gestão descentralizada e participada. Esta frase corresponde ao ponto 4 do art.º 64.º da Constituição da República Portuguesa, onde é enunciado o direito social de proteção da saúde e o dever de a defender e promover.

Numa época em que grande parte dos desafios do setor ultrapassa os prestadores convencionais de serviços de saúde, estes dois aspetos – descentralização e participação – assumem um papel de extrema relevância para o desenvolvimento do sistema de saúde.

Ao longo do tempo, o SNS procurou descentralizar-se através de um modelo hierárquico baseado na constituição de regiões de saúde ao nível regional e/ou sub-regional e de diferentes entidades prestadoras de cuidados de saúde.

A autonomia destes organismos foi maior ou menor de acordo com as diferentes conjunturas. Atualmente, constatamos um acentuar do centralismo da decisão, sendo que até decisões operacionais são já assumidas pelo Ministério das Finanças, ultrapassando a competência do Ministério setorial. Este fator, por si só, é limitador de quaisquer mecanismos de participação existentes ou que se venham a constituir.

Mais recentemente, iniciou-se a discussão sobre a municipalização dos serviços de saúde. Esta hipótese merecerá analisar a fragilidade e a fragmentação verificada em sistemas de saúde que optaram por este modelo.

Poucos saberão, mas atualmente um dos três elementos do Conselho Executivo dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) é indicado pelas câmaras municipais. Ora, a este órgão compete, entre outras funções, aprovar os planos plurianuais e anuais de atividades e respetivas dotações orçamentais e elaborar o relatório anual de atividades e a conta de gerência.

Mesmo ao nível das unidades locais de saúde, um dos elementos do conselho de administração é indicado pela respetiva Comunidade Intermunicipal ou Área Metropolitana. Pelo contrário, ao nível dos hospitais, o modelo formal de participação passa por um conselho de natureza consultiva.

O sucesso de um qualquer gestor passa, necessariamente, por desenvolver mecanismos que promovam a participação dos clientes na definição dos serviços prestados e dos profissionais que os prestam.



Atualmente, a partilha de decisão entre o médico e o doente é uma matéria incontroversa. Contudo, continuamos a resistir em ouvir os doentes e as suas famílias para além dos cada vez mais frequentes inquéritos de satisfação. O desenvolvimento de serviços humanizados e centrados no doente passa por envolver os doentes no desenho de mecanismos formais e informais de participação na definição do modelo de cuidados e desenho dos serviços.

Num momento em que as redes sociais imperam e em que todos têm uma opinião desordenada e muitas vezes destrutiva, exige-se à gestão das organizações mobilizar as opiniões para a construção de melhores serviços de saúde.

A motivação e a satisfação, dos profissionais de saúde exigem da gestão um envolvimento destes na decisão.

A desvalorização do papel das chefias intermédias, incluindo a dos diretores de serviço, tem contribuído para a insatisfação dos profissionais e a degradação do serviço prestado. Estando os conselhos de administração altamente limitados na sua capacidade gestionária, avocar decisões e inferiorizar as chefias intermédias contribuirá para uma maior desestruturação das organizações.


Ao nível da direção de enfermagem foi encontrado um modelo interessante, em que todos os enfermeiros que exercem funções de direção e chefia participam. Em tempos, foi dado um papel ainda mais substantivo aos trabalhadores pela eleição do diretor clínico, por parte dos médicos, e do enfermeiro diretor, por parte dos enfermeiros. Existe algum consenso sobre o fracasso desta medida que não é neste texto oportuno escalpelizar.

Uma possibilidade em assegurar uma maior participação e descentralização pode passar por separar a função estratégica e de supervisão (conselho não executivo) da função executiva (conselho executivo).

Este modelo tem a potencialidade de assegurar a participação de vários interessados como administradores não executivos (e.g. Ministério da Saúde, Ministério das Finanças, representantes dos profissionais, dos doentes, das autarquias, de outros prestadores de cuidados de saúde, do setor social, das universidades), mas com responsabilidade pela gestão estratégica, recrutamento, avaliação e supervisão da gestão executiva. Por outro lado, o conselho executivo pode focar-se na gestão profissional da organização.

Independentemente da busca do modelo de governação ideal, é necessário reconhecer o imperativo pela clareza de propósito, a fim de orientar o Hospital Público para prestar cuidados centrados no doente e de elevada qualidade. Esta clarividência passa por perceber que o sistema de saúde está a mudar e o SNS precisa de evoluir.

A evolução do Hospital Público não será possível mantendo o colete de forças centralista do Ministério das Finanças, exigindo-se autonomia, descentralização, participação e valorização dos doentes e dos profissionais de saúde.

Melhor Gestão, Mais SNS.



Artigo publicado na edição de março do Hospital Público.

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