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«Valor em saúde e Medicina (Dentária) - O busílis da questão»


António Pereira da Costa

Médico dentista. Membro da direção da Associação Portuguesa dos Médicos Dentistas do Serviço Público APOMED-SP.



Nestes últimos meses, temos assistido ao planeamento de uma autêntica revolução no Serviço Nacional de Saúde com uma reorganização total do seu funcionamento provavelmente apenas equiparada à sua fundação, há 44 anos.

Esta reorganização tem como principal objetivo uma integração de cuidados, isto é, com foco no doente como um todo e, contrariamente ao que muitas vezes acontece, os serviços acompanham o utente e não o oposto. Desta forma, dispomos de soberana oportunidade de modificar e planear a forma como os cuidados de saúde são prestados aos utentes.

Sem sombra de dúvida que o único objetivo que pode unir os interesses de todos os participantes do sistema é a criação de valor em saúde, uma vez que o objetivo é o de prestar cuidados de saúde e melhorar o valor para os utentes; o foco tem de ser este e não apenas reduzir custos financeiros, como tão frequentemente é visto.

O valor é criado no(s) tratamento(s) prestados ao utente ao longo de todo o ciclo completo de cuidados; nada mais é que o quociente entre os resultados de saúde importantes que importam para essa condição e os custos da prestação desses cuidados ao longo de todo o ciclo.

Assim, torna-se imperativo que os sistemas de prestação de cuidados de saúde sejam redesenhados para corresponder a todo o ciclo, transversais a quaisquer área, como o caso da medicina dentária, neste caso, no Serviço Nacional de Saúde, que tem também, pela primeira vez desde a criação de gabinetes dentários no SNS, a possibilidade de estar verdadeiramente integrada na prestação de cuidados.

António Pereira da Costa

Prevenir e gerir a doença

Por um lado, os cuidados de saúde devem ser reorganizados em unidades de prática integrada, tendo por base as patologias e não as especialidades, através da identificação de doentes com necessidades comuns e custos mais elevados, de modo a ser possível prevenir e gerir a doença.


Para isso, importa identificar os outcomes para uma população saudável, com equipas multidisciplinares de modo a conseguir integrar a prestação de cuidados ao longo de todo o processo em diferentes níveis de cuidados.

Medir o valor, por patologia, fluxo de doentes e através de uma monitorização constante de resultados vai permitir melhorar de modo a alcançar outcomes alvo a um custo mínimo, transversal a todas as áreas.

Reduzir a rotação de profissionais

Por outro lado, a gestão dos profissionais. É inadmissível a forma como muitos profissionais são tratados atualmente. Profissionais altamente qualificados sem contratos de trabalho estáveis, sem carreira própria, sob alçada em muitos casos de profissionais sem conhecimento técnico da área e sem condições de exercer as suas funções.


Esta situação tem como consequência uma constante rotação de profissionais que desta forma não conseguem desenvolver um trabalho contínuo, com claro prejuízo para o utente e para todo o ciclo da prestação de cuidados que, além de piorar os outcomes, torna todo o processo mais caro.

A forma de pagamento é também um fator de extrema importância na medida em que se o que pedem e exigem é volume, é volume que se entrega. Contudo, tal não corresponderá necessariamente à entrega de valor. Os pagamentos devem ser alinhados com o desempenho coletivo face aos resultados ao longo do ciclo completo de cuidados, em vez de promover o volume.

Se queremos valor, é necessário pagar em função de valor, por ciclo de cuidados. Desta forma, há um alinhamento dos prestadores para que se atinjam os objetivos.

É importante ressalvar, uma vez mais, que os modelos que vão sendo implementados em Portugal ao longo dos anos, alinham os profissionais para o objetivo pretendido mas, em muitas vezes, a gestão que é feita dos profissionais não valoriza os mesmos, passando apenas a exigir-lhe mais e não raras vezes maior volume.



Será que com um elevado volume de consultas e com a diminuição dos tempos de consulta estabelecidos iremos entregar mais valor aos utentes? Será que, nas condições precárias que se mantêm os profissionais estes vão conseguir criar mais valor, ao mesmo tempo que cada vez mais volume se lhe exige?

A componente tecnológica tem que ser tida em conta

Uma outra área fundamental é a tecnológica. Começando nos sistemas de informação, é necessário que se criem plataformas que agreguem dados relativos a todo o ciclo de cuidados, de forma segura e eficaz e de forma transversal a todos os serviços, em todo o país e tendo em conta também a rede de privados.

Também em termos da prestação clínica dos serviços, a componente tecnológica tem que ser tida em conta. Longe vão os anos em que o setor público dispunha da melhor e mais recente tecnologia em números adequados.

Especificamente no caso da medicina dentária, com os constantes avanços tecnológicos, caso não haja um investimento, há o risco das condições de trabalho serem completamente obsoletas, podendo referir o exemplo da Endodontia, que deverá ser feita com auxílio a Localizador Eletrónico Apical e Motor Endodôntico. Todos estes fatores irão contribuir para que se entregue valor.

Obstáculos à reforma

A Direção-executiva do SNS tem desempenhado o seu papel reformista. Primeiro, a ter a ousadia de querer modificar toda a gestão da saúde em Portugal estando disposta para isso a lutar com alguns dos vícios instalados. Em segundo, pioneira a analisar a situação da Medicina Dentária e o grupo de trabalho “Saúde Oral 2.0” a planear uma verdadeira integração no sistema de saúde público.

A criação de Serviços de Saúde Oral nas futuras ULS, a revisão dos sistemas de informação, a criação de uma carreira especial de Medicina dentária e a fixação de 180 profissionais são algumas das medidas e que vão de encontro ao anteriormente descrito como uma boa organização e capaz de criar valor em saúde.

Apesar disto, há um grande risco, o da demora na implementação e aprovação do documento elaborado pelo grupo de trabalho e que poderá levar a que, tal como em 2018, muitas das medidas não saiam da gaveta.

Outro dos riscos, claramente comprometedor do sucesso da empreitada, são os recursos humanos, neste caso os médicos-dentistas e assistentes dentários, sem carreira própria e neste momento não se vislumbram novidades nesse âmbito.

Um outro entrave poderá prender-se com a organização das futuras ULS que decorre, muito provavelmente, neste momento e que se preveem que tenham início em Janeiro de 2024, uma vez que caso não seja idealizado o Serviço de Saúde Oral no planeamento e plano de negócios das futuras Unidades, compromete a sua execução futura.


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