ACES Cascais: Consulta de Terapia Familiar deve arrancar já em novembro na USF Vila
Trabalhar problemas relacionais, familiares e conjugais, agravados após o contexto da pandemia, com os utentes do ACES Cascais é o objetivo da Consulta de Terapia Familiar, que deverá arrancar já em novembro.
Este é apenas um dos projetos que a USF Vila, que nasceu em plena pandemia e ainda não completou um ano, tem em mente para o futuro. São também objetivos desta equipa promover o bem-estar dos profissionais, garantindo a coesão e a interajuda e aproveitando as especificidades de cada elemento.
Multinacionalidade da zona leva a desafios linguísticos e culturais
Por se localizar em Cascais, vila que alberga muitos imigrantes, a USF Vila detém listas de utentes muito variadas, que podem ir desde o Brasil até à China, passando por Itália, Ucrânia, Angola, Nepal ou Bangladesh. Na ótica de Carla Fernandes, coordenadora da unidade, esta característica, que leva a que todos os dias a equipa receba utentes de diferentes nacionalidades, acaba por “tornar a atividade clínica interessante e desafiante, porque é preciso uma adaptação até ao nível da linguagem”.
No seu caso, diz acompanhar muitas famílias chinesas, que “nem sempre sabem português, o que implica o uso de aplicações de apoio de tradução, ou a vinda de um acompanhante para que a comunicação flua”. Essas acabam por ser consultas “mais exigentes, em que é preciso estar-se muito atento para evitar ou minimizar os erros causados pela barreira linguística e em que, muitas vezes, também se comunica através de imagens e de gestos”. Perante a presença de um acompanhante, realça a importância da “atenção dada aos sinais não-verbais, para garantir que o utente está confortável”.
A nossa interlocutora recorda-se bem da primeira vez em que recebeu uma criança chinesa, de quatro anos, recém-chegada a Portugal, com paralisia cerebral e não vacinada, o que a marcou muito. “Não é uma situação comum, pelo que tivemos de discutir o caso em equipa. Hoje, já tem o esquema de vacinação completo e tem seguimento regular na USF e no Hospital de Cascais”, conta.
Mas, recuando àquele primeiro contacto, recorda-o como “um momento em que se começa do zero e em que a empatia que se cria com a família é importantíssima”.
Em termos culturais, também se verificam barreiras, principalmente na Consulta de Planeamento Familiar. “Apesar de aconselharmos os melhores cuidados de saúde, é importante respeitarmos o utente e as suas especificidades culturais. É uma negociação e é o utente que tem a palavra final”, destaca.
Em termos económicos, a médica avança que há uma abrangência, deparando-se tanto com utentes de classes económicas muito altas como muito baixas. “Há pessoas com necessidades habitacionais e alimentares em risco, que, felizmente, são suportadas com uma boa rede de apoio municipal”, diz.
Dinamizar projetos no ACES de Cascais, oferecendo consultas diferenciadas sem prejudicar o atendimento
Com a ambição de criar consultas mais diferenciadas, dirigidas aos utentes de todo o ACES Cascais, a primeira a arrancar será a de Terapia Familiar, já em novembro. “Enquanto médicos de família, temos noção do impacto que a família tem na saúde e no bem-estar dos utentes e temos de estar capacitados para gerir essa relação”, afirma Carla Fernandes.
Sendo a MGF “uma especialidade tão abrangente, por vezes, torna-se difícil gerir tudo numa consulta. Além disso, haver alguém com competência nessa área é essencial para ajudar a lidar com situações que se encontram diariamente ao nível das relações entre casais, pais, filhos e netos”.
Este apoio seria “uma mais-valia a acrescentar ao trabalho que é feito pela equipa de Psicologia e que tem sido essencial para responder ao agravamento da saúde mental dos utentes que se registou durante a pandemia de covid-19”.
Além desta consulta, projeta-se, a título futuro, apostar nas áreas da Medicina Desportiva, da Inteligência Emocional e do Aleitamento Materno, dado haver vários médicos com formações nestes domínios.
No entanto, estes projetos arrancarão “de forma progressiva, para não prejudicar o atendimento, nesta fase de retoma assistencial, em que vários utentes não tiveram acesso aos cuidados médicos durante muito tempo e alteraram o seu estilo de vida, agravando a saúde física e mental”.
Carla Fernandes: “Enquanto MF, temos noção do impacto que a família tem na saúde e no bem-estar dos utentes e temos que estar capacitados para gerir essa relação”
No caso da Inteligência Emocional, Carla Fernandes é uma das duas médicas que frequentou essa pós-graduação e, juntas, de forma informal, têm tentado aplicar estratégias a nível da dinâmica da equipa. “Acabámos de vir de uma fase muito difícil para todos e temos tentado investir no cuidar, não só dos utentes, mas também de nós, enquanto equipa”, destaca. Nesse sentido, têm procurado “fazer atividades e celebrar datas especiais, para consolidar o espírito de equipa e ultrapassar dificuldades e obstáculos”.
Futuramente, gostariam de aplicar esta área de trabalho à Saúde Infantil, “para que as crianças e os jovens conhecessem melhor as emoções e aprendessem a geri-las, promovendo a Saúde Mental”.
“Existe uma reduzida perceção do impacto que a família tem na promoção da saúde física e mental e no controlo da doença”
Este ano, a médica de família Carina Nunes integrou a equipa da USF Vila, enquanto, simultaneamente, iniciava o 4.º ano da formação pós-graduada de cinco anos, organizada pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, em regime pós-laboral. Após um primeiro ano de ensino introdutório e dois de ensino especializado, com enfoque na familiarização dos conceitos do Modelo Sistémico e no desenvolvimento de competências teóricas específicas do trabalho sistémico, estes dois últimos anos são de supervisão clínica, na qual acompanha famílias.
Foi neste contexto de arranque de uma fase mais prática da formação, que surgiu a ideia de Carina Nunes poder “alcançar não só as famílias de utentes que segue, mas as da própria comunidade de Cascais, para abordar os seus problemas relacionais, familiares e conjugais e utilizá-los também na formação, fundindo as práticas como médica de família e como terapeuta familiar”.
Carina Nunes
Apesar de alguns ACES do país já disponibilizarem consultas deste tipo, com equipas multidisciplinares geralmente constituídas por médicos de família, psicólogos e assistentes sociais com esta formação, o ACES Cascais acabava por oferecer apenas consultas de Psicologia.
A pandemia veio, no seu ponto de vista, “agravar as problemáticas familiares e as condições socioeconómicas, acabando por afetar as relações familiares ou conjugais e adensar as doenças crónicas”, daí ter sido identificada a necessidade de criar uma consulta específica multiprofissional, direcionada para o apoio das famílias.
A partir do momento em que o projeto arrancar, o que deverá acontecer em novembro, esta será uma consulta da carteira adicional de serviços a que os próprios profissionais de saúde do ACES Cascais poderão referenciar os seus utentes.
“Este projeto servirá também para abrir a porta à terapia familiar no ACES”
Nuno Basílio, presidente do Conselho Clínico e de Saúde do ACES Cascais, não só incentiva e valoriza a criação da Consulta de Terapia Familiar como será um dos elementos que a realizará, por também ele ser um terapeuta familiar em formação.
Para explicar a origem desta Consulta, identifica que surgiu “da necessidade da população e da carência de resposta que existia nesta área”. Como refere, “por um lado, nesta fase pós-pandemia, muito complexa para as famílias, a nível laboral e económico, e exigente, em termos de mudanças, havia uma necessidade reforçada de oferecer resposta aos utentes na área da Saúde Mental.
Por outro, a capacidade de resposta que existia a nível da Psicologia do ACES Cascais era muito curta em termos de recursos humanos e de formação na corrente sistémica, que aborda a terapia familiar, o que condicionava a coterapia”. Face ao interesse manifestado por Carina Nunes, “surgiu a ideia de impulsionar este projeto”.
Apesar de, tal como a colega, estar também na fase de supervisão clínica, em 2020, quando assumiu a presidência do CCS, acabou por congelar o processo. Esta será, assim, “uma oportunidade para o retomar, voltando a acompanhar famílias, para concluir a formação”.
Nuno Basílio
Esta área de interesse surgiu na sua vida no final do 1.º ano de internato, quando frequentou uma formação dada pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. “Sendo a dinâmica familiar uma das áreas que mais trabalhamos em consulta, considerei que teria interesse conseguir explorar mais as técnicas e o conhecimento inerente à psicologia sistémica”, observa.
Nesta fase inicial, adianta que cada terapeuta conseguirá acompanhar até oito famílias por mês. Além da médica de família da USF Vila e do psicólogo da URAP Cascais, que deverão integrar este corpo clínico, o presidente do CCS do ACES Cascais refere que dois elementos do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Cascais também manifestaram esse interesse, além de uma interna de MGF, que também estão em formação. No seu caso, deverá seguir uma a duas famílias mensalmente.
O objetivo é que “a capacidade de resposta possa ir crescendo à medida que novos profissionais se associem ao projeto”, explica o médico de família de 35 anos, destacando que “este projeto servirá também para abrir a porta à terapia familiar no ACES, permitindo que colegas com interesse nas áreas da Saúde Mental e da reposta às famílias possam fazer estágios e, com a autorização dos utentes, começar a assistir a algumas sessões”. No fundo, pretende-se “constituir um núcleo de profissionais de referência neste domínio”.
Numa fase seguinte, “tal como sucede noutras consultas, em que a centralização ou a decentralização favorece a maior acessibilidade dos utentes”, prevê-se que, futuramente, esta Consulta possa vir a ser disponibilizada noutros polos.
“Com a reestruturação do Edifício de Carcavelos e o reforço do corpo clínico, haverá disponibilidade de recursos humanos e físicos para ampliar o número de horas atribuídas ao projeto”, planeia.
A reportagem completa, que inclui entrevistas a vários profissionais, pode ser lida na edição de outubro do Jornal Médico dos cuidados de saúde primários.
Dirigido a profissionais de saúde e entregue nas unidades de saúde familiar (USF) de Portugal, esta publicação da Just News tem como missão a partilha de boas práticas, de boas ideias e de projetos de excelência desenvolvidos no âmbito do SNS, visando facilitar a sua replicação.