Avaliação do risco cardiovascular: «A tabela de SCORE-2 é a maior ratoeira que se inventou»
A afirmação é "provocatória", reconhece o cardiologista José Ferreira Santos, mas é também muito pertinente. Em declarações à Just News, explica o que o levou a partilhar a ideia de que "a tabela de SCORE-2 é a maior ratoeira que se inventou" no Cardiovolution, evento que se realizou há dias no Fórum Cultural de Alcochete.
O médico e diretor clínico do Hospital da Luz Setúbal começa por reconhecer que "O SCORE-2 é uma excelente ferramenta populacional para nós identificarmos as populações em risco", mas lembra que há depois a necessidade de "olhar para o indivíduo e, de alguma forma, tentar afinar aquilo que nos indica".
Intervenção de José Ferreira Santos no Cardiovolution
Doentes de alto risco
Esta individualização "é particularmente verdade para os doentes de alto risco que, normalmente, precisam de toda uma estratégia de prevenção mais agressiva". Contudo, José Ferreira Santos salienta que "nem sempre é óbvio que o doente está disponível para aceitar essa estratégia, porque a perceção que ele tem do risco não é necessariamente igual à que nós temos".
E faz questão de reforçar a ideia, afirmando que, quando o SCORE-2 indica que há elevado risco de eventos cardiovasculares, "para o doente pode não querer dizer que esse elevado risco seja suficiente para estar disponível para tomar medicamentos e para implementar as medidas necessárias".
Assim, e partindo desta "dissociação entre a nossa perceção do risco e a perceção do risco do doente", afirma que o foco tem de passar por "melhorar a comunicação para que o doente valorize efetivamente a situação e tome as medidas certas." Ou seja, "o risco é óbvio para o médico, mas não é para o doente!".
A propósito desta necessidade de melhorar a comunicação, José Ferreira Santos questiona: "Qual o real impacto de dizer a um doente que tem 12% de possibilidades de ter um evento a 10 anos?" E recorda o exemplo que partilhou durante a sua intervenção no Cardiovolution:
"Se eu for ao banco fazer uma aplicação de 10.000 euros a 10 anos e me disserem que eu tenho 12% de hipóteses de ganhar alguma coisa, mas que tenho 80% de hipóteses de não ganhar nada, se calhar não vou lá deixar o dinheiro."
Uma das imagens de marca do Cardiovolution são os debates que se realizam após cada intervenção
Doentes de risco aparentemente baixo
Exatamente no outro espectro, "nos doentes de risco baixo, ou aparentemente baixo, em que o SCORE pode-nos dar uma falsa sensação de segurança", o desafio é completamente diferente.
Assim, após realizada a estimativa "tendo em conta fatores de risco convencionais, portanto, a hipertensão, a idade do doente, o colesterol, se fuma ou se não fuma e se tem diabetes, pode dar-me a indicação de que o risco é baixo... mas nem sempre é verdade".
E José Ferreira Santos chama a atenção, desde logo, para quando "há história familiar de doença cardiovascular em idade jovem, pois é um marcador muito relevante, já que normalmente associa-se a alterações genéticas, quer seja a nível da dislipidemia quer seja de outros mecanismos".
Destaca ainda outros antecedentes, "concretamente no caso das mulheres, a história de complicações durante a gravidez, a história de doenças autoimunes, aspeto que somam risco e que, às vezes, se não estivermos atentos, passam-nos despercebidos. E pode ocorrer, de facto, doentes que têm SCORE-2 baixo mas que, na prática, o seu risco cardiovascular não é assim tão baixo".
A situação não é rara de acontecer, como sublinha: "Assisto muito a esta realidade na prática clínica e, quando falo com colegas, parece que a avaliação do risco cardiovascular frequentemente se resume a uma tabela de SCORE-2, o que me levou a dizer no Cardiovolution, em tom provocatório, que esta é a maior ratoeira que se inventou... e às vezes sinto que é um bocado verdade."
A mensagem central a passar? "Se ficarmos só pelo SCORE-2, acho que deixamos muita gente de fora de uma avaliação mais individualizada."
Cardiovolution: "Fazer-nos sair da zona de conforto"
Idealizado e dinamizado por José Ferreira Santos, o Cardiovolution é um projeto que vai já na sua 4.ª edição, mas a verdade é que surge no seguimento dos Encontros de Cardiologia, que o médico organizou ao longo de uma década, no âmbito do Serviço de Cardiologia do Hospital da Luz Setúbal.
O evento deste ano teve uma grande adesão, reunindo mais de centena e meia de especialistas no dia 1 de março, e acaba por ser a edição com o maior número de participantes. O mentor do projeto considera que "foi muito positivo", até porque o ano passado o Cardiovolution reuniu uma centena de profissionais.
As várias sessões de Quiz ao longo do dia acabaram por envolver os participantes de forma bastante dinâmica
Na sua opinião, um dos elementos que estará a contribuir para este crescente interesse dos médicos no evento passa muito pela sua "abordagem disruptiva", que este ano foi bastante visível no tema das ferramentas digitais, no icónico Quiz “Uma imagem vale mais do que mil palavras!" ou na sua própria intervenção sobre a estratificação do risco, conforme explica:
"Tem a ver com a minha maneira de estar. Gosto particularmente de pôr as pessoas a pensar e colocá-las fora da zona de conforto. Acho que às vezes vivemos o dia-a-dia com verdades absolutas que achamos que ficam para sempre e a medicina tem essa beleza: Aquilo que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira e acho que os médicos têm a obrigação desta atualização permanente. E, mais do que a atualização, questionarmo-nos sobre o que estamos a fazer, se de facto é o mais correto."
A participação ´orgânica` dos congressistas é uma consequência do ambiente informal que é promovido
Segundo José Ferreira Santos, o caso das ferramentas digitais é "um bom exemplo", onde a discussão tinha por base o que é que o médico deve fazer quando o doente aparece, por exemplo com o registo de arritmias no seu smartwatch. E o que fazer? "Podemos ficar incomodados que o doente traga esses dispositivos para a consulta ou, pelo contrário, devemos é dizer ao doente ´traga isso para a consulta`, porque ajuda-nos na decisão clínica... e eu sei que isto é provocatório."
E acrescenta: "Quando penso no Cardiovolution, penso exatamente desta forma. É importante sairmos um pouco da nossa zona de conforto para refletir... e se calhar perceber que há algo que já deveríamos estar a fazer diferente. É exatamente este o âmago do Cardiovolution, a forma como o evento é pensado."