Medicina IV do Hospital Fernando Fonseca: Aliar a investigação e o ensino à atividade clínica
Na época em que José Delgado Alves foi convidado pela Direção Clínica do Hospital para abrir o Serviço de Medicina IV, impôs duas condições fundamentais: a possibilidade de escolher a sua equipa e a criação de uma unidade de doenças imunomediadas sistémicas (UDIMS), porque esta é uma área à qual se tem dedicado ao longo de toda a sua carreira, de forma complementar à sua atividade enquanto internista.
“Na altura, já havia médicos no hospital a desenvolver atividade nesta área, mas não existia uma unidade estruturada”, refere o professor da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa (agora renomeada NOVA Medical School).
Outro desejo era que o Serviço tivesse uma atividade científica e académica em simultâneo com a atividade clínica. “Enquanto médicos, temos a obrigação de ver e tratar doentes, foi para isso que fomos treinados. Mas temos também a responsabilidade de garantir que o conhecimento aumenta e que se transmite, isto é, que se investiga e que se ensina.”
Segundo José Delgado Alves, todos os médicos do Serviço são internistas de “mão cheia”, com muita experiência em imunologia clínica, o que possibilitou ter o “melhor dos dois mundos”, ou seja, continuar a ter uma estrutura de Medicina Interna "muito sólida" e, ao mesmo tempo, com o interesse nas doenças autoimunes que desejou para o Serviço.
O responsável faz questão de salientar a coesão da equipa, destacando o papel dos enfermeiros, dos auxiliares e dos administrativos porque, como frisa, o Serviço “não é só dos médicos”.
A integração da UDIMS no Serviço
A enfermaria do Serviço de Medicina IV tem, neste momento, 45 camas, sendo que cinco destas estão alocadas à UDIMS e outras seis a cuidados intermédios. No final das obras atualmente em curso no hospital e que se estima terminarem no final deste verão, prevê-se que a Unidade se torne independente do ponto de vista físico (embora, formalmente, já esteja autonomizada), pelo que haverá mais seis camas a juntar às existentes.
O ambulatório da UDIMS inclui a consulta geral de doenças autoimunes, em que também se realiza uma primeira abordagem para triagem dos doentes; a “consulta aberta”, que permite que qualquer doente seguido na Unidade e que tenha um problema agudo seja visto no próprio dia por um elemento da equipa; o Hospital de Dia do Serviço, onde são feitos os tratamentos regulares nos doentes que já estão num plano terapêutico, ou quaisquer procedimentos que sejam necessários fazer de urgência; e as consultas de coorte, que incluem a consulta de esclerose sistémica, a consulta de lúpus sistémico, a consulta de terapêutica biológica e a consulta de doença inflamatória ocular.
Outra das vertentes do Serviço de Medicina IV é a unidade de investigação clínica, na qual são feitos os ensaios clínicos (neste momento, estão oito a decorrer, sobretudo na área das doenças imunomediadas, mas não só), sob a orientação de Catarina Favas (coordenadora dos ensaios clínicos).
Além dos doentes da área de influência do hospital, a Unidade recebe pedidos de referenciação de todo o país e até do estrangeiro. Após a conclusão das obras, a UDIMS será a primeira unidade do país a desenvolver atividade na área das doenças autoimunes de forma autónoma com internamento próprio.
Qualidade, responsabilidade e espírito de equipa
Quando recrutou os elementos da equipa, José Delgado Alves procurou qualidade técnica, sentido de responsabilidade e espírito de equipa, atributos que admite serem os mais procurados. “A diferença é passar da intenção para o facto e nem todos os colegas se adaptaram”, aponta.
O nosso entrevistado admite não ser a favor da forma como, hoje em dia, os concursos médicos são feitos. “Define-se um perfil, mas depois ninguém fica responsabilizado pela escolha de determinada pessoa porque… foi a concurso! As escolhas deveriam ser personalizadas e assumidas e o diretor deveria depois ser responsável pelas contratações que fez”, comenta.
José Delgado Alves é também um “fervoroso crítico” da forma como os hospitais estão organizados, “segundo um padrão de ‘especialidades verticais’”.
Considera que, hoje em dia, a realidade é "muito diferente da que existia há 60 anos (1950)", nomeadamente no que toca ao conhecimento da Medicina, aos meios complementares de diagnóstico, às terapêuticas, à responsabilidade ética, ao conhecimento que os doentes têm sobre a saúde e as doenças, às características demográficas e até ao próprio estatuto do médico e à forma como o doente o percebe. Contudo, sublinha, apesar de todas essas diferenças, "os hospitais mantêm a mesma estrutura conceptual de organização e funcionamento dessa época".
De acordo com José Delgado Alves, “não está, por exemplo, institucionalizada a noção de que um médico não tem de trabalhar especificamente num serviço da sua especialidade, mas pode fazê-lo no contexto do hospital, desempenhando as funções mais adequadas aos seus interesses e formação, eventualmente integrando equipas diferentes ou mesmo departamentos distintos”.
“Um interno deve ser capaz de trilhar os seus caminhos!”
O Serviço tem um plano de formação em Medicina que cumpre as normas definidas, mas, segundo José Delgado Alves, “não deveria ter de cumprir”. O internista lamenta que a especialização, tal como os serviços e os hospitais do país, esteja “cristalizada”. “Os médicos na sua especialização têm de fazer determinadas atividades definidas e com pouca margem de manobra, para depois serem avaliados num exame cujo significado prático acaba por ser muito pequeno em relação à importância que lhe é dada”, menciona.
“Julgo que, em última instância, este método tão espartilhado vai acabar por reduzir a progressão e o desenvolvimento que um especialista pode ter”, refere. No seu entender, para se ser especialista é necessário cumprir mínimos necessários e, a partir daí, devem ser desenvolvidas competências de acordo com a vocação e a capacidade do médico. O futuro de cada um deve assim ser definido de forma individual, como consequência do currículo individual e das necessidades de cada instituição que o pretenda contratar.
O nosso interlocutor considera que a formação deve ter em atenção o objetivo de vida profissional do interno. “A esmagadora maioria dos médicos não tem noção da variedade de atividades que pode fazer ou do tipo de médico que gostaria de ser.”
Por outro lado, para José Delgado Alves, o conceito de tutor é completamente redutor. “Um interno deve ser capaz de trilhar os seus caminhos!”, diz.
Medicina Interna como "professora natural de todas as especialidades"
José Delgado Alves considera que a Medicina Interna é a especialidade “rainha” na Medicina. O que distingue o internista do subespecialista é a “forma de pensar”, devendo o primeiro saber tanto (ou mais) de teoria que o segundo.
“Neste momento, um internista trata muito melhor um doente com insuficiência cardíaca do que um cardiologista, porque esta doença não é só um problema do coração”, salienta, a título de exemplo, e acrescenta: “A técnica é um ato que se treina, mas o pensar tem de ser integrador e é muito mais complexo!”.
Em teoria, o médico defende a ideia de todas as enfermarias terem como base a Medicina Interna, que deveria coordenar o tratamento do doente. No entanto, “na prática, isto corre mal porque, mesmo dentro da classe médica, há a ideia de que a subespecialidade tem uma aura diferente. Não se valoriza o internista, nem entre pares, nem ao nível das administrações e, de repente, o coordenador transforma-se no… criado!”
Para além disso, “a Medicina Interna devia ser o ‘professor natural’ de todas as especialidades”, que considera estarem “extraordinariamente fechadas relativamente ao que é ser especialista”.
Na sua opinião, “muitos pensam ser uma perda de tempo fazerem um, dois ou mais anos de Medicina Interna durante a especialidade e cria-se a aberração de existirem especialistas médicos que não tiveram qualquer formação complementar em Medicina Interna". E sublinha: "Em países onde a formação pós-graduada é excelente (EUA, Canadá, Escandinávia, Austrália, etc., a formação em Medicina Interna (para outros especialistas) é cada vez maior. Em Portugal… já sabemos tudo!”.
"Uma escola clínica ímpar no nosso país"
Questionado sobre se o número de camas do Serviço tem respondido às necessidades, José Delgado Alves afirma que, apesar de, por vezes, não existir essa noção, o Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca é aquele que serve o maior número de pessoas no país. “Oficialmente, o hospital serve cerca de 650 mil, oficiosamente são 750 mil, mas quem trabalha nele percebe que serão provavelmente perto de 1 milhão, sendo que cerca de 200 mil não têm médico de família.”
O responsável lamenta que a comunicação social e os próprios responsáveis da tutela só registem os problemas na Urgência, que muitas vezes derivam da dimensão projetada do hospital, e nunca se destaque toda a atividade de excelência que aqui se faz, como, por exemplo, na cirurgia (nomeadamente, colorretal), na Psiquiatria, na Neonatalogia, na Oftalmologia e na UDIMS, entre muitos outros serviços.
“É lamentável que o Hospital Amadora Sintra seja cronicamente visto como o ‘patinho feio’, ignorando-se ou desvalorizando-se tudo o que diariamente aqui se faz, quer do ponto de vista qualitativo, quer quantitativo.”
“Nós temos mais reanimações e emergências ‘reais’ num dia do que outros hospitais do país numa semana”, aponta, acrescentando que o hospital tem mais doentes graves identificados na triagem de Manchester do que qualquer outro, sendo também, por isso, "uma escola clínica ímpar no nosso país".
A entrevista completa pode ser lida na edição n.º 7 de LIVE Medicina Interna.