«Temos um Sistema de Saúde incapaz de se adaptar às necessidades»
À frente da ULS que recebeu maior financiamento em todo o país, constituída por oito unidades hospitalares, quase uma centena de unidades funcionais e serviços dos Cuidados de Saúde Primários e mais de 10 mil profissionais, Alexandre Lourenço reconhece o papel de liderança que esta organização tem na região Centro.
Defensor de modelos descentralizados de gestão em proximidade, assentes numa abordagem de base populacional, decidiu criar comunidades de saúde, envolvendo autarquias e outras estruturas, para oferecer respostas ajustadas a cada realidade.
Alexandre Lourenço
Em entrevista ao Jornal Médico dos Cuidados de Saúde Integrados, Alexandre Lourenço analisa a avaliação que a Comissão Técnica Independente está a realizar sobre a sustentabilidade das ULS de cariz universitário.
Afirmando não conhecer "uma razão válida para as ULS não alavancarem ensino, investigação e inovação". Alexandre Lourenço afirma acreditar no modelo de ULS universitária: "Trabalhamos com a Universidade de Coimbra, no âmbito do nosso Centro Académico e Clínico, para valorizar e honrar a nossa génese universitária." Lamenta, contudo, "a inexplicável falta de representatividade de Coimbra na Comissão Técnica Independente".
Partilhamos abaixo uma parte dessa entrevista:
"Temos um Sistema de Saúde muito cristalizado no que existe"
JN - Para si, a necessidade de promover a integração de cuidados é indiscutível?
AL – No primeiro mês da ULS de Coimbra, lançámos o programa Integrar+, em que pedíamos aos profissionais para apresentarem projetos de integração de cuidados, sendo o único requisito envolver elementos dos Cuidados de Saúde Primários e Hospitalares. Foram apresentados 55 projetos, sendo que, neste momento, estamos já a implementar três.
Mais do que ninguém, os profissionais sabem bem quais são as lacunas e deficiências do Sistema de Saúde. Quando o médico de família referencia um doente para uma consulta hospitalar que ocorrerá daí a seis meses percebe que o modelo não funciona.
Todos concordamos que este modelo é insuficiente e não consegue assegurar os melhores cuidados, pelo que tem de ser alterado. Temos um Sistema de Saúde muito cristalizado no que existe e com uma incapacidade de se adaptar às necessidades das pessoas. Todos os setores de atividades, do bancário ao retalho, nos últimos 20 anos, se adaptaram às necessidades das pessoas, baseando-se numa maior conveniência e redução do atrito na utilização.
Hoje, em qualquer lugar, usamos o telemóvel para fazer compras online e já lá vai o tempo em quer íamos ao banco depositar um cheque. No setor da Saúde ainda estamos a dar os primeiros passos.
Continua organizado como há 40 ou 50 anos e há necessidade de transformá-lo. A integração e a partilha de informação é um instrumento para adaptarmos o Sistema de Saúde em função das necessidades das pessoas e prestarmos cuidados centrados no cidadão.
Na ULS de Coimbra, dezenas de profissionais aplicam estes conceitos num conjunto de áreas que definimos como prioritárias, como a diabetes, a insuficiência cardíaca, as doenças crónicas respiratórias, a depressão e o acompanhamento da grávida, acreditando que conseguiremos ter melhores resultados em saúde.
JN — Tem encontrado profissionais interessados em trabalhar dessa forma?
AL — Hoje, temos mais de 200 profissionais envolvidos na criação de percursos clínicos integrados. Uma das vantagens de fazer parte de uma organização com esta dimensão e com cariz universitário é que não falta gente com inteligência, dedicação e vontade de transformar.
Claro que não é fácil quando os profissionais já trabalham 40 a 60 horas por semana, mas a sua abertura tem sido excecional. Também exigem muito do CA. Gostamos dessa exigência de baixo para cima. Promove a transformação que ambicionamos.
JN – Deve ser das pessoas que melhor conhecem os hospitais públicos, até porque se empenhou na iniciativa “Caminho dos Hospitais”, enquanto presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), que previa reuniões mensais descentralizadas nos hospitais do SNS, para conhecer a realidade e os desafios de cada um. O que retirou dessa experiência?
AL – De facto, penso não haver um hospital em Portugal que não tenha visitado! [risos] Cada instituição é diferente e as respostas que estamos a desenvolver não são replicáveis em todos os contextos.
Com o “Caminho dos Hospitais”, iniciativa que se mantém, o nosso objetivo passava por destacar boas práticas.
Pessoalmente, aprendi muito com todas as visitas que fizemos. Os projetos que nos foram apresentados dão-nos ideias e alento para as implementarmos quando estamos em funções de responsabilidade.
E a emoção dos profissionais de saúde nele envolvidos foi algo para mim muito marcante!

JN – A dimensão desta ULS condiciona a proximidade entre o CA e os seus profissionais?
AL – No contexto de uma ULS que integra oito hospitais e vinte e seis centros de saúde, é evidente que existe uma dificuldade acrescida em comunicar com os cerca de 10 mil trabalhadores e mesmo entre eles próprios. Temos organizado várias ações para se conhecerem melhor e às diferentes instituições.
Em gestão, pelo menos 20% do nosso tempo deve ser dedicado a contactar e a trabalhar com pessoas em proximidade. Não é fácil, mas tento reservar um dia por semana para essa tarefa. É claro que, mesmo aqui nos Hospitais da Universidade de Coimbra, muitos colaboradores certamente ainda não reconhecerão no homem que aqui chega de bicicleta pelas 8h30 da manhã o presidente do CA.
JN – Desloca-se regularmente às demais unidades desta ULS?
AL – Passo grande parte do tempo aqui nos HUC. Visito os hospitais e os centros de saúde e autarquias conforme a agenda definida com bastante antecedência.
Para obviar distâncias, temos reuniões trimestrais transmitidas em streaming e gravadas, que permitem fazer um ponto de situação das atividades realizadas e planeadas com todos os profissionais.
JN – Passaram nove meses desde a generalização do modelo ULS. Tem havido partilha de experiências entre as organizações?
AL – Vão ocorrendo eventos que fomentam a discussão e também acontece deslocarmo-nos a outras instituições e recebermos a visita de colegas. Estamos, igualmente, a procurar conhecer boas experiências em curso no estrangeiro, para percebermos como conseguimos adotá-las ao nosso contexto.
Entretanto, o IV Encontro Nacional de Integração de Cuidados vai realizar-se em Coimbra, nos dias 10 e 11 de outubro, e será com certeza um espaço muito importante para a partilha daquilo que está a ser feito por todo o país.
JN — Atualmente, há uma Comissão Técnica Independente a avaliar a sustentabilidade das ULS de cariz universitário. Qual é a sua opinião quanto a esta questão?
AL — Acho que é um ótimo tema. Contudo, é necessário separar dois conceitos que muitas vezes se confundem: o caráter universitário e a diferenciação. Por vezes, podem ser coincidentes, mas nem sempre.
Até 2023, tínhamos identificados os hospitais mais diferenciados (Grupo E), aos quais se aplicavam preços mais elevados que aos restantes hospitais gerais (grupos B, C e D). Nem todos eram universitários e existiam hospitais universitários fora deste grupo, por exemplo, o Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira era do Grupo C, ou o Hospital de Braga do Grupo D. Destaco que o modelo estatístico utilizado para criar estes grupos considerou o ensino universitário. Contudo, demonstrou apenas um impacto residual em termos de custos.
Outros fatores foram bem mais determinantes, como o nível de diferenciação dos serviços prestados. Vejamos! No caso do CHUC, se não tivéssemos reforços financeiros, na vigésima quinta hora, terminávamos o ano de 2023 com cerca de 100 milhões de euros de défice. A situação financeira foi-se agravando ao longo de anos, devido a ineficiências operacionais e a áreas de prestação subfinanciadas. O facto de ser um CH universitário pode ter contribuído em bem menor escala para os resultados financeiros.
No aspeto do financiamento, o problema colocar-se-ia nas ULS se o modelo fosse apenas capitacional, pois, colocaria em risco a diferenciação hospitalar. Não é o caso, e esperemos que nunca seja unicamente capitacional. É claro que o caráter universitário traz custos acrescidos que devem ser considerados, mas dependerão sempre das opções tomadas.
Por exemplo, se dermos 20% de tempo dedicado para investigação a cada médico, estaremos a reduzir em 20% as atividades assistenciais, com impacto no custo das prestações de saúde.
Para manter a atividade assistencial, tal esforço deveria ser acompanhado da contratação de mais 20% de médicos e a assunção dos respetivos custos. Na questão organizacional, é referido que as ULS podem diluir a investigação científica e o ensino. No nosso contexto, os CSP representam
10% da nossa força de trabalho e são claramente uma mais-valia em termos de oportunidades de investigação e inovação.
Confesso que nunca ouvi um CA de um hospital universitário a pedir mais artigos científicos ou publicações aos profissionais, ou a dar tempo dedicado generalizado para atividades de ensino ou de investigação.
Por isso, parece estranha esta ameaça vinda dos CSP, para mais quando, por exemplo, todos os anos existem alunos do programa doutoral da nossa Faculdade de Medicina que são médicos de família. Mesmo em termos de inovação em saúde, os desenvolvimentos mais interessantes decorrem de soluções de interface entre níveis de cuidados e de modelos preditivos com impacto na saúde da população.
Tal como os hospitais universitários, as ULS podem ser polos de excelência na produção científica e na inovação e serem essenciais para a formação de profissionais de saúde. Contudo, mantém-se a necessidade de definir um modelo de alinhamento entre as universidades e as ULS universitárias. A criação dos Centros Académicos e Clínicos foi um bom passo que apenas foi limitado pela incapacidade de os dotar de personalidade jurídica e respetivos meios.
JN — Acredita então no modelo das ULS universitárias?
AL - Não conheço uma razão válida para as ULS não alavancarem ensino, investigação e inovação. No nosso caso, acreditamos no modelo de ULS universitária e trabalhamos com a Universidade de Coimbra, no âmbito do nosso Centro Académico e Clínico, para valorizar e honrar a nossa génese universitária.
Não por tradição, mas porque é uma marca distintiva que nos permite ser mais e fazer melhor. Estou certo de que a versão final do nosso Regulamento Interno marcará um antes e um depois no caráter universitário de uma entidade do setor empresarial do Estado no setor da Saúde.
Abraçámos uma agenda conjunta com os nossos parceiros naturais e sabemos para onde ir: ser a unidade portuguesa líder em termos de educação, investigação e inovação. Com o modelo ULS, temos a expectativa de duplicar o acesso a financiamento competitivo, tal como garantir um aumento substancial dos estudos clínicos.
Ao mesmo tempo, sabemos que o desenvolvimento dos cuidados em proximidade e da integração dos mesmos beneficia esta agenda. A qualidade de cuidados e a melhoria da experiência dos doentes necessita destas apostas.
Por outro lado, sabemos que os cuidados em proximidade e integrados dão tempo e oportunidade aos nossos profissionais para se dedicarem às áreas da investigação e da inovação. Posso dar um exemplo: apenas com a implementação na ULS de Coimbra do Percurso Clínico Integrado para a Diabetes esperamos reduzir para metade as admissões destes doentes na Urgência e no Internamento.
Só conseguimos ter um hospital universitário, terciário e altamente diferenciado se pudermos cuidar e tratar melhor as pessoas fora do hospital. Apesar da inexplicável falta de representatividade de Coimbra na CTI, espero que se chegue a bom porto.

“A minha vida engloba uma grande componente de sacerdócio a esta ‘casa’”
Doutorado em Gestão pela NOVA SBE, Alexandre Lourenço foi construindo um percurso profissional forte. Licenciou-se em Biologia pela FCTUC, em 2001, e rapidamente integrou a Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA e o Alto Comissariado da Saúde, onde começou a orientar o seu percurso para a administração hospitalar.
Começou por completar o Curso de Especialização em Administração Hospitalar pela ENSP-UNL, seguido por uma pós-graduação em Gestão de CSP e, mais tarde, o mestrado em Gestão da Saúde. Frequentou ainda formações internacionais de entidades como a Organização Internacional do Trabalho e a OMS.
Passou pelo CHVNG/E como administrador hospitalar. Quando iniciou funções como diretor-coordenador de Contratualização e Financiamento na ACSS, em 2008, assumiu a coordenação do grupo de trabalho para o desenvolvimento da contratualização dos CSP, o que o leva a “conhecer bem a realidade das USF”. Nesta altura, é responsável técnico pela introdução dos novos modelos de financiamento das ULS: capitação ajustada pelo risco e fluxos de doentes.
Entre 2011 e 2014, durante a Troika, foi membro do Conselho Diretivo da ACSS. Entre outras relevantes iniciativas, desenvolveu o programa de benchmarking dos hospitais e ULS.
Em 2014, tornou-se consultor da OMS e iniciou funções como administrador hospitalar do CHUC, ascendendo a presidente em novembro de 2023. Entre 2016 e 2022, foi eleito por dois mandatos presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. Desempenha ainda atividade docente, lecionando as disciplinas de “Liderança em organizações de saúde”, “Casos Práticos de Administração Hospitalar” e “Estratégia e Marketing”, na ENSP-UNL. Foi recentemente indicado para coordenador do único Centro Colaborativo da OMS para a Gestão da Saúde.
“A minha vida engloba uma grande componente de sacerdócio a esta ‘casa’, que exige muito de um gestor”, comenta, referindo-se à ULS de Coimbra..jpg)
A entrevista completa pode ser lida na edição de outubro do Jornal Médico dos Cuidados de Saúde Integrados.


