«Há que promover, de forma sistematizada, a avaliação do risco cardiovascular dos portugueses»
O cardiologista Carlos Aguiar considera que se devia promover, “de forma sistematizada”, a avaliação do risco cardiovascular dos portugueses, apesar de reconhecer que não é uma tarefa simples conseguir fazer aplicar tal medida.
No seu entender, para além dos próprios profissionais de saúde, é necessário sensibilizar quem “manda” na saúde. O tema do 30.º Congresso Português de Aterosclerose, que se realiza agora em outubro e a que preside, vai precisamente nesse sentido – “Da ciência à prática clínica e às políticas de saúde”.
Carlos Aguiar
“O risco cardiovascular é multifatorial"
Em entrevista à Just News, o especialista do Hospital de Santa Cruz mostra não ter dúvidas sobre quão importante seria pôr em prática uma avaliação generalizada do risco cardiovascular.
“Há um número considerável de pessoas que apresenta um risco elevado ou muito elevado que não faz a mais pequena ideia que o tem. E que nem sequer são acompanhadas em qualquer nível de cuidados porque, felizmente, não têm sintomas, assim continuando até ao dia em que tiverem um evento que, na verdade, até poderia ter sido evitado”, refere, acrescentando:
“O risco cardiovascular é multifatorial e, portanto, é difícil determinar quem a ele está sujeito sem se fazer uma avaliação adequada, que terá que incluir uma conversa com a pessoa, uma observação física objetiva, a realização de algumas análises e, eventualmente, exames complementares de diagnóstico. Só assim se poderá obter a informação necessária para estimar o seu risco cardiovascular.”
Assegurar que as pessoas têm "noção do risco que correm"
Carlos Aguiar cita estudos observacionais feitos no nosso país que permitem concluir que perto de 40% dos portugueses que têm um risco alto ou muito alto de ter problemas cardiovasculares integram este grupo que está completamente assintomático.
“Gente de meia-idade, 40 e muitos anos, 50, 60 e poucos, ou seja, ainda com atividade laboral”, sublinha o médico. O cardiologista não hesita um segundo quando questionado sobre o que faria para implementar um processo sistematizado de avaliação do risco cardiovascular entre a população:
“Teria que começar por envolver quem está em melhores condições de a fazer, que são os médicos de família. Mas, para que a expectativa não saísse defraudada, tornava-se obviamente necessário capacitar esses profissionais, dar-lhes condições para poderem desempenhar essa missão.”
Mas Carlos Aguiar logo adianta que essa avaliação poderia ser facilitada com a colaboração de outros profissionais de saúde, como os enfermeiros de família, “assumindo um papel muito útil e facilitador do processo”.
Também as farmácias comunitárias seriam chamadas a dar o seu apoio, “tendo um papel ativo na disseminação da importância da avaliação do risco cardiovascular e no encaminhamento das pessoas para a fazerem”.
Afirmando ser frequente ouvir de doentes que são surpreendidos com um evento cardiovascular que, se tivessem tido noção do risco que corriam, teriam estado dispostos a fazer medicação preventiva e a praticar um estilo de vida mais saudável, o médico insiste na necessidade de se fazer alguma coisa nesse sentido.
Carlos Aguiar
“Não me sinto frustrado, mas também não estou satisfeito”
O convite que a Direção da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose fez a Carlos Aguiar para presidir à Comissão Organizadora do seu 30.º Congresso, que terá como palco a cidade de Évora, não surge por acaso. “Há muito tempo que me interesso pelas doenças ateroscleróticas, que são a maioria das doenças cardiovasculares, tanto na perspetiva clínica como de políticas de saúde”, reconhece o próprio.
Por exemplo, desde a criação, em 2005, do entretanto designado Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares que o médico está envolvido na orientação técnica desta área, colaborando com a Direção-Geral da Saúde.
“Não me sinto frustrado, mas também não estou satisfeito. Não estou contente porque acho que há muito mais que se pode fazer, mas considero que se tem conseguido fazer muita coisa boa”, responde, quando confrontado com o que se fez e o que se poderia ter feito durante estes 17 anos.
“A primeira prioridade que se estabeleceu quando o Programa Nacional foi criado foi proporcionar a melhor resposta possível ao enfarte agudo do miocárdio. Na altura, o 112 nem sequer assegurava uma cobertura nacional, não havia meios de emergência médica pré-hospitalar que chegassem a determinadas zonas... Foi algo extraordinário o que se conseguiu fazer ao nível do tratamento em Via Verde do enfarte e também do AVC”, afirma, prosseguindo:
“A taxa de mortalidade hospitalar por enfarte agudo do miocárdio, que na altura estava acima dos 10/15%, situa-se hoje em dia na casa dos 5% e seguramente que isso contribui para a redução da mortalidade por cardiopatia isquémica que se tem vindo a observar anualmente desde que Programa existe.”
Carlos Aguiar lembra que, “logo de seguida, também se fez um grande esforço para tornar mais fácil o trabalho dos médicos de família no seguimento dos doentes a fazer anticoagulação oral, que já há muitos anos era reconhecida como uma terapêutica fundamental e das mais eficazes que existem para a prevenção do AVC em pessoas com fibrilhação auricular”.
O que se fez, recorda, foi “uma descentralização da monitorização da anticoagulação oral, passando-a para os Cuidados de Saúde Primários, o que proporcionou ao médico de família ter um papel muito mais ativo na gestão da doença e do risco cardiovascular do doente como também fez reduzir, de uma forma mais marcada, a mortalidade por AVC”.
Preocupação de "envolver profissionais de diferentes áreas"
Um aspeto que Carlos Aguiar releva prende-se com a possibilidade de atualmente ser possível prescrever um anticoagulante por 12 meses em continuidade, facilitando a vida aos doentes, que não se veem obrigados a renovar a receita a cada 30 dias..
No entanto, “sinto-me comprometido com a necessidade de continuar a lutar para que as doenças cérebro e cardiovasculares ateroscleróticas não fujam da agenda das políticas de saúde”.
No seu entender, o programa do 30.º Congresso Português de Aterosclerose “procura ir ao encontro da preocupação de envolver profissionais de diferentes áreas, até porque só dessa forma é possível termos sucesso na luta contra as doenças ateroscleróticas”.
“Da ciência à prática clínica e às políticas de saúde”
Uma vez definido o tema do 30.º Congresso Português de Aterosclerose – “Da ciência à prática clínica e às políticas de saúde” –, Carlos Aguiar desenhou o Programa procurando, desde logo, explorar a questão da interdisciplinaridade:
“A aterosclerose não é uma patologia que seja específica de qualquer órgão ou sistema. É uma doença sistémica e, como tal, há inúmeras especialidades médicas e cirúrgicas que lidam diretamente com as suas complicações e com as intervenções necessárias para aliviar algumas delas – Medicina Geral e Familiar, Medicina Interna, Cardiologia, Endocrinologia, Cirurgia Vascular, Nefrologia, Oncologia...”
Os doentes oncológicos, por exemplo, “estão a viver mais anos e a morrer cada vez mais de causas cardiovasculares, havendo uma fortíssima interação entre cancro e aterosclerose”. O cardiologista diz haver até estudos muito recentes que sugerem que em plena fase aguda do enfarte do miocárdio há alterações químicas que acontecem no sangue que são carcinogénicas.
“Não é só o cancro que facilita a ocorrência de doenças cardiovasculares, o inverso também acontece. Portanto, precisamos de trazer os oncologistas para perto de nós porque os nossos doentes têm problemas comuns”, exclama.
Incluir a discussão da problemática da aterosclerose na vertente das políticas de saúde foi outra das preocupações de Carlos Aguiar na elaboração do Programa do Congresso, nomeadamente, colocando em horário de destaque a mesa-redonda intitulada “Translação da ciência para políticas de saúde”.
O objetivo será analisar o que, nesta matéria, se passa em Portugal, procurando identificar as barreiras que se levantam à implementação, com sucesso, das recomendações de prevenção cardiovascular, desde as farmacológicas às não farmacológicas. Refletir sobre o papel que é desejável que o médico de família tenha na avaliação do risco cardiovascular – “quase um check-up”, diz o cardiologista – é outro dos objetivos que se pretende atingir com essa sessão.
“Há um conjunto de médicos de família que pegaram nesta ideia e que têm vindo a refletir sobre a mesma, sendo que vamos trazer esses colegas para a discussão”, reforça, frisando que, no seu entender, “será à MGF que vai caber essa avaliação do risco cardiovascular dos portugueses”:
“É o médico de família que se encontra na melhor posição para saber o que isso implica, ver qual a melhor forma de concretizar esse objetivo, pronunciar-se sobre a maneira mais eficaz de alcançar a população e transmitindo quais as dificuldades que tem enfrentado no seu dia-a-dia. No meu entender, é ao nível dos Cuidados de Saúde Primários que nós temos que desenvolver um esforço significativo na vertente da implementação do acesso à avaliação do risco cardiovascular e às terapêuticas disponíveis.”
Uma terceira vertente do 30.º Congresso Português de Aterosclerose prende-se com a discussão das “inovações e avanços” que se têm registado nesta área, que “nalguns casos ainda nem sabemos muito bem como encaixar em termos de recomendações”.
O artigo pode ser lido na edição de setembro do Jornal Médico dos Cuidados de Saúde Primários.
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