«Um Centro de Saúde não é apenas um local de consultas, mas um espaço vivo»
Nuno Capela, médico de família e coordenador da USF Serpa Pinto, considera que os cuidados de saúde primários não são devidamente valorizados do ponto de vista político e administrativo, quando "ocupam uma função primordial e deviam ser a porta de entrada e o pilar central do SNS".
Em entrevista à Just News, o médico considera que "o que falta, muitas vezes, é uma visão política e administrativa que compreenda verdadeiramente a importância dos Cuidados de Saúde Primários (CSP)".
Na sua opinião, "os indicadores de desempenho e os registos eletrónicos oferecem dados concretos sobre a eficácia das nossas unidades, mas essa informação não tem sido utilizada com a devida granularidade para influenciar a definição de políticas".
E indica que, se nos últimos anos, "tivemos a sorte de ter figuras de relevo dos CSP a funcionar como um elo entre o terreno e a gestão superior", refere que, "atualmente, essa figura de referência não existe" e destaca que, nesse sentido, a USF-AN pode "ocupar um espaço crucial na defesa dos CSP".
E acrescenta: "Precisamos de uma entidade que represente os três grupos profissionais que compõem as USF − médicos de família, enfermeiros de família e secretários clínicos. É fundamental que essa representatividade seja forte, garantindo que as necessidades de cada um sejam devidamente ouvidas e integradas nas decisões estratégicas."
Nuno Capela
CSP enquanto "meros apêndices das ULS" ?
Para Nuno Capela, "se queremos um SNS sustentável, precisamos de um modelo organizacional que valorize os centros de saúde enquanto estruturas dinâmicas, onde a proximidade com o utente não se limite à consulta médica, mas também se expanda para uma abordagem integrada da saúde comunitária".
Nesse sentido, o especialista de MGF refere que é necessário um "planeamento estratégico eficaz, um sistema de informação que realmente suporte a continuidade dos cuidados e um modelo de contratualização baseado no desempenho, mas que seja justo, transparente e focado na qualidade dos serviços prestados".
E se tal não se concretizar? "Se não reforçarmos esta visão, corremos o risco de transformar os CSP em meros apêndices das ULS, diluindo a sua identidade e função primordial", refere, partilhando que a sua visão para o futuro inclui "centros de saúde que sejam realmente a porta de entrada e o pilar central do SNS, com equipas capacitadas, motivadas e reconhecidas pelo seu papel determinante na saúde da população".
"A transformação do SNS não pode ser apenas administrativa"
Nesse processo de transformação do SNS, "temos de reconhecer que um centro de saúde não é apenas um local de consultas", afirma o coordenador da USF Serpa Pinto. E desenvolve a ideia:
"É um espaço vivo, onde profissionais de diferentes áreas trabalham em conjunto, em contacto direto com a população e as suas necessidades. Para isso, necessitamos de um sistema de informação verdadeiramente integrador – não apenas um registo eletrónico único, mas uma plataforma que nos permita construir planos de cuidados personalizados e partilháveis entre todos os cuidadores, dentro e fora do centro de saúde."
Assim, considera que "quanto mais informação tivermos sobre o que fazemos e sobre os nossos utentes, melhor podemos responder às suas necessidades, com estratégias personalizadas e baseadas em dados reais". No entanto, adverte que tal exige também uma "abordagem descentralizada, que dê autonomia às equipas locais para implementar mudanças sem estarem dependentes de decisões superiores muitas vezes distantes da realidade do terreno".
A transformação do SNS não pode ser apenas administrativa; tem de ser uma mudança estruturada, que envolva os profissionais e os utentes, tornando os CSP verdadeiros pilares de um Sistema de Saúde moderno e próximo das pessoas. E as USF, com a sua autonomia e capacidade de adaptação, são um dos melhores exemplos de como essa mudança pode ser feita de forma eficaz.
"O contacto direto com o terreno é indispensável para uma boa liderança"
Entre 2015 e 2019 Nuno Capela assumiu a liderança do Conselho Clínico e de Saúde do antigo ACES Porto Ocidental, uma experiência que lhe deu "a oportunidade de ter uma visão mais ampla do Sistema de Saúde, de perceber como as decisões são tomadas e quais os desafios reais da gestão intermédia".
Por outro, destaca o facto de, ao longo desse período, ter conseguido manter "uma ligação direta ao terreno, continuando a exercer como médico de família". Considera que "essa dualidade foi essencial para compreender, com maior clareza, onde estavam os pontos de bloqueio e onde havia margem para mudança".
E acrescenta: "Estar numa posição que servia de ponte entre as equipas clínicas e a gestão superior da ARS deu-me uma noção concreta da morosidade e burocracia que ainda travam muitas das mudanças necessárias. No entanto, também mostrou que, quando conseguimos trazer a realidade das unidades para a mesa das decisões, aumentamos a probabilidade de implementar soluções eficazes."
Desafiado a indicar qual terá sido a lição mais valiosa dessa experiência, assegura que foi "a confirmação de que o contacto direto com o terreno é indispensável para uma boa liderança". Ou seja: "As decisões mais impactantes são aquelas que nascem de um conhecimento profundo da realidade, e isso é possível quando se está envolvido no dia-a-dia das equipas e dos utentes. Manter-me ativo como médico de família ajudou-me a tomar decisões mais ajustadas, mais informadas e, sobretudo, mais realistas."