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«Um centro de endometriose deve sempre ter um centro de procriação medicamente assistida»

A complementaridade da Medicina da Reprodução e da cirurgia reprodutiva é um ideal defendido por Luís Ferreira Vicente, ginecologista com subespecialidade em Medicina de Reprodução do Hospital Lusíadas Lisboa.

De acordo com o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia e da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, "não faz sentido que um centro que realize cirurgia reprodutiva, para tratamento de endometriose, por exemplo, não ofereça técnicas de procriação medicamente assistida".

Em entrevista à Just News, o médico aborda outros temas, como a tendência de declínio da fertilidade masculina associada à exposição a disruptores endócrinos, "o que tornará cada vez mais necessária a PMA".


Luís Ferreira Vicente

JN – Em que contexto surgiu o seu interesse pela Medicina da Reprodução?


LFV – Penso que surgiu do contacto que tive com essa valência também durante o internato. No fundo, a Ginecologia e Obstetrícia é uma especialidade médico-cirúrgica, mas a Medicina da Reprodução ainda consegue integrar essas duas vertentes de forma mais intensa, porque engloba a parte da cirurgia reprodutiva, para tratarmos a endometriose ou aderências pélvicas e, assim, melhorarmos as condições para o casal conseguir uma gravidez de forma natural.

No Centro de Procriação Medicamente Assistida do Hospital Lusíadas Lisboa, que coordeno, não só fazemos tratamentos avançados de procriação medicamente assistida como também temos a possibilidade de fazer cirurgia reprodutiva, permitindo que os casais consigam a gravidez sem necessidade de tratamentos. Portanto, complementamos a Medicina da Reprodução com a cirurgia reprodutiva, e defendo que é esse trabalho conjunto que deve existir. As duas devem ser aliadas e não viver de costas voltadas.


Foi também com essa ótica que o Hospital dos Lusíadas criou o primeiro centro especializado em endometriose, coordenado pela Dr.ª Fátima Faustino. É uma doença que implica uma grande multidisciplinaridade entre os cirurgiões que fazem Medicina de Reprodução e técnicas de PMA, os cirurgiões colorretais, os urologistas, os radiologistas e os anatomopatologistas. Temos reuniões em que discutimos os casos clínicos mais complexos, de maneira que consigamos oferecer a melhor estratégia terapêutica.

É preciso respondermos a questões como: “Será que o tratamento de PMA deve ser feito antes ou depois da cirurgia?” Por isso, um centro especializado em endometriose deve sempre ter um centro de procriação medicamente assistida porque, muitas vezes, a presença do fator masculino ou a perda de função tubária pelas aderências que existem condicionadas pela endometriose exigem uma discussão multidisciplinar, para bem das doentes.

Não faz sentido que um centro que realize cirurgia reprodutiva, para tratamento de endometriose, por exemplo, não ofereça técnicas de procriação medicamente assistida.

JN – Essa é a realidade que se verifica nos outros hospitais?

LFV – Não, nem todos os hospitais públicos e privados têm estes dois centros. Aliás, a nível privado, a Lusíadas Saúde é a única a ter um Centro de PMA. Neste momento, fazemos cerca de 500 ciclos FIV por ano.

JN – Trata-se, certamente, de uma área muito sensível, em que a equipa tem de lidar com sentimentos de ansiedade e de frustração quando os tratamentos não estão a resultar...

LFV – Sim, nós temos de saber lidar com essa frustração. Muitas vezes, os homens, por exemplo, não reagem tão bem quando se apercebem que o fator é masculino naquela causa da infertilidade, enquanto as mulheres reagem melhor e prontificam-se logo a iniciar o tratamento.

É importante transmitirmos aos casais que estamos a dar o nosso máximo e que também eles sintam que o estão a fazer. Ambos temos de sentir que estamos a fazer o melhor
que podemos. Assim, se ambos percebermos que demos tudo por tudo, mas, no final, a natureza não tiver ajudado a gerar a gravidez, teremos a consciência tranquila por termos dado o nosso melhor, o que permite que os casais ultrapassem essa frustração e evita que haja o abandono de um futuro tratamento.

Estamos cada vez mais a tentar oferecer tratamentos user friendly, reduzindo, desde logo, o número de injeções. Enquanto antigamente fazíamos ciclos longos, que demoravam cerca de um mês, agora fazemo-los em 12 dias.

Passámos a usar medicamentos que nos permitem fazer ciclos curtos com antagonistas, em que começamos a estimular e bloqueamos após cinco a seis dias de estimulação, em vez de termos de bloquear a ovulação duas semanas antes e começarmos depois a estimular, em ciclos longos, com agonistas. Assim, encurtamos o tempo em tratamento e o número de injeções.
 

Temos já medicamentos que nos permitem com apenas uma injeção fazer a estimulação para sete dias, em vez de usar uma injeção subcutânea diária. O facto de tentarmos reduzir ao máximo as injeções faz com que esta carga associada ao tratamento não seja tão forte e ajuda a que, em caso de insucesso, os casais não desistam e regressem.


A atuação é diferente se pensarem: “Vamos ter de passar por aquilo outra vez!”, em vez de: “Vamos ter de passar por aquilo tudo outra vez!!!”. Portanto, estes tratamentos mais simplificados permitem que haja uma menor taxa de abandono do tratamento.



JN – A Ginecologia lida com a Saúde da Mulher. No entanto, na área da Medicina da Reprodução, o homem é igualmente protagonista...

LFV – Exatamente, e cada vez mais é o fator masculino que está na origem da infertilidade. Tem existido um declínio da fertilidade masculina, de tal forma que, nos últimos 20 anos, assistimos a uma redução de 50% do número total de espermatozoides, em todo o mundo.

Apesar desta acentuada diminuição, não atingimos ainda o valor crítico a partir do qual há uma infertilidade estabelecida, mas, se a tendência se mantiver, provavelmente, daqui a alguns anos a procriação medicamente assistida vai ser ainda mais necessária.

JN – O que está na origem de tamanha redução?

LFV – Os disruptores endócrinos pelos quais estamos rodeados, como o bisfenol. Este é responsável pelo aumento dos estrogénios, o que pode ter impacto na fertilidade masculina e também estar a levar à origem de formas de endometriose cada vez mais graves, em mulheres cada vez mais jovens.

Na minha formação, fiz um estágio em Bruxelas, num serviço de referência na área da endometriose, e aquelas formas graves a que assisti nessa altura, há 20 anos, são as que surgem agora em Portugal. Provavelmente, tem que ver com poluentes ambientais, em que estes disruptores endócrinos são importantes, porque alteram as nossas hormonas.

Há um trabalho publicado há três anos pela Universidade de Granada que mostra que mais de 90% dos talões de impressão térmica que foram avaliados em Portugal e em Espanha são ricos em bisfenol. Importa sublinhar que eles estão proibidos no Japão desde 2010!

Em Portugal, algumas lojas já têm no verso dos talões a indicação de que são livres de bisfenol, pelo que essa consciencialização está a começar a ter impacto. Há quem considere que os operadores de caixa dos supermercados estão sujeitos a níveis de bisfenol superiores aos de outras pessoas.

Na China, há também graves problemas de infertilidade, o que os leva a ter grandes centros de PMA e a elaborar muitos trabalhos prospetivos na área da Medicina da Reprodução. Recordo-me bem de o Prof. Peter Humaidan, da Dinamarca, que considero um dos maiores peritos em Medicina da Reprodução, ter-me contado que tinha ido à China e que, ao visitar um centro de PMA, quando questionou qual era o piso que ocupava no hospital, responderam-lhe que era o edifício todo!



JN – Conhecendo bem a realidade dos CSP, dado que a sua mulher é enfermeira numa USF, como acha que podia haver uma maior integração entre cuidados primários e secundários e entre o SNS e o Sistema de Saúde?

LFV – Neste momento, no SNS, temos os CSP a funcionar a dois tempos, com as USF, que trabalham com incentivos, e as UCSP, que não adotam esse regime. Os profissionais devem receber mais pelo trabalho extra que realizem, sendo que esses incentivos que existem nas USF faz com que estas funcionem bem, e tal é sentido pelos próprios utentes. Frequentemente, as doentes solicitam que eu disponibilize as citologias, a pedido das suas unidades, porque tal integra um critério de qualidade.

O facto de essas unidades funcionarem melhor vai permitir retirar muitos doentes dos cuidados secundários, porque apostam na prevenção, têm uma boa organização e conseguem referenciar de uma maneira mais atempada, porque os doentes estão sob controlo.

Por outro lado, se os profissionais sentirem que são remunerados de acordo com aquilo que produzem, provavelmente não terão tanta tendência para sair da instituição, e é isso que alguns administradores hospitalares ainda não entenderam. Agora, as coisas mudaram. Antigamente, quem quisesse trabalhar no campo da Medicina da Reprodução ou numa área cirúrgica preferia optar pelos hospitais públicos, onde  podia fazer técnicas inovadoras, pois os privados não ofereciam as mesmas condições.

No entanto, neste momento, o panorama mudou. Muitas vezes, temos melhores condições nos hospitais privados do que nos públicos. Veja-se o exemplo da robótica.



A entrevista completa pode ser lida na última edição de Women`s Medicine.

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