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Martim Moniz: USF da Baixa empenhada em «reduzir a distância entre médicos e utentes»

A USF da Baixa, localizada no Martim Moniz, foi inaugurada dia 17 de novembro de 2016, após vários anos de expectativas. Contudo, "parte da equipa trabalha junta há mais de 1 ano", explica Martino Gliozzi, coordenador da unidade, indicando que começaram a trabalhar nas instalações antigas na Rua São Nicolau, em setembro de 2015. "Depois, aos poucos, foram chegando novos profissionais."

Vantagens e desafios das novas instalações

Em entrevista à Just News, afirma que teve de existir uma adaptação "às novas instalações, a uma unidade que é muito maior, que condiciona mais dificuldades logísticas e também com o perigo de ´dispersão` entre os profissionais (em 2 pisos, com muitos gabinetes) e de perder a relação/convivio/comunicação entre os profissionais que, de uma maneira mais natural, acontecia na unidade antiga".

Além disso, refere o médico italiano (em Portugal desde 2009), que "´ganhámos` uma maior visibilidade (o centro de saúde anterior quase passava despercebido no meio dos prédios lisboetas da Baixa)". Sendo que essa realidade "pode trazer prós, (a potencialidade de ser um símbolo de mudança, de cuidados de saúde primários e de um SNS de qualidade), como também contras (muita curiosidade, utentes fora da área de abrangência a querer inscrever-se na USF, etc.)".



Adaptação "não é nada simples"

Segundo o responsável, com a criação da USF da Baixa e a expansão da equipa "foi atribuído o médico de família a cerca 2600 utentes sem médicos e foram inscritos na USF cerca 3400 novos utentes vindos de outras unidades. Isso torna necessário um periodo de adaptação de ambas as partes (utentes e profissionais/unidade), que nem sempre é simples".

Quanto aos utentes, "descobrem regras e métodos de funcionamento diferentes aos que já estavam acostumados". Por outro lado, os profissionais têm que que conhecer os novos utentes: "diz-se que o médico de família necessita de pelo menos 1-2 anos para conhecer minimamente a sua nova lista de utentes, um processo que não é nada simples".

Processo de melhoria contínua

Questionado sobre quais os aspetos mais prementes que são necessários implementar ou ajustar na unidade, Martino Gliozzi começa por referir que "é indispensável integrar na USF pelo menos mais um profissional do Secretariado Clinico".

Após estes primeiros meses de adaptação, foi possível constatar que, "com a dimensão desta unidade e com este número de utentes e de solicitações que são feitas, o número atual de administrativos é insuficiente". E adianta mesmo: "muitas das queixas que recebemos dos utentes neste momento têm a ver com o atendimento telefónico".



O médico de família chama também a atenção para o facto de "estar a ser difícil conseguir realizar visitas domiciliárias aos nossos utentes, dada a dimensão da nossa área de abrangência, pelo que seriam desejáveis transportes para tornar mais eficientes as deslocações".

Relativamente ao equipamento, "ainda não recebemos todo o material que era necessário para a criação da USF (frigorífico das vacinas, escalas optométricas, quadro de exposição para a sala de espera, projetor para a sala de reuniões, etc) e persistem problemas estruturais (climatização, canalização por exemplo)".

O coordenador da unidade manifesta igualmente a necessidade e o desejo da sua equipa em contribuir ativamente para "melhorar a articulação/integração com as outras unidades do ACES Lisboa Central e com cuidados secundários, neste momento quase inexistente".

Profissionais com "voz na organização do espaço"

As instalações da USF da Baixa foram construídas de raiz, o que nem sempre é possível na criação de novas unidades. Martino Gliozzi destaca este elemento como importante para o atendimento e seguimento dos utentes, adiantando que existiu uma forte preocupação em envolver os profissionais da USF:

"Tiveram uma voz na organização do espaço, na escolha do material, o que pode aumentar a satisfação no trabalho e, como conseqüência, melhorar os serviços prestados".

A unidade teve também a possibilidade de obter material "que melhora a nossa prática e os nossos serviços, como a marquesa ginecológica nos gabinetes médicos, podendo-se realizar colpocitologias oportunistas para o rastreio do cancro do colo do útero".



Instalações dignas: "uma mensagem de esperança" 

Relativamente ao facto da unidade ter uma "boa apresentação", tal é importante para os utentes, "que se sentem mais acolhidos, mais em casa. Muitos utentes mostram apreciar o novo espaço (`se for para o melhor, então sim que vale a pena mudar`)".

Para Martino Gliozzi, "a nossa comunidade sentiu que o Estado e a Câmara Municipal quiseram investir, quiseram estar presentes".

E recorda que, há poucos anos, "esta zona representava a degradação, um mix de pobreza, prostituição, toxicodependência, migração e, de alguma maneira, a derrota das instituições que pareciam quiser desistir desta zona".

Hoje em dia, "embora ainda exista muito trabalho a fazer (a zona de Almirante Reis/Intendente é reconhecida como um bairro de intervenção prioritaria)", não hesita em considerar que a criação da unidade, "com condições dignas, pode ser uma mensagem de esperança para a nossa comunidade".



Uma equipa jovem, disposta "a mudar hábitos e criar novas dinâmicas". 

Inclusão social: "cuidar os utentes de uma maneira justa"

Na inauguração da USF, em novembro, o primeiro ministro fez várias alusões à importância da cidade de Lisboa ser um espaço de inclusão e ao facto da USF também ser simbólica “por ser um espaço de inclusão, integrando todas as populações que aqui vivem, independentemente da sua origem". Martino Gliozzi reforça esta ideia:

"Todos os intervenientes na inauguração (eu, o presidente da Câmara, o ministro da Saúde, o primeiro ministro), enfatizaram este aspecto, de como a Saúde pode ter um papel fundamental na promoção de inclusão social. Pode ser um ponto de encontro, pode ajudar a integração e, numa sociedade onde existe uma grande desigualdade económica e social, só o facto de cuidar dos utentes de uma maneira justa (que é diferente que dizer de uma maneira igual, pois igualdade não significa justiça) pode ter um enorme impacto na redução destas disparidades."

Relativamente a projetos e medidas a implementar de forma a facilitar e promover esse processo de inclusão, o coordenador da unidade refere o papel da assistente social, que se torna essencial" e outras ideias, "como a realização de visitas domiciliarias a hipertensos, diabéticos, puérperas e recém-nascidos de risco acrescido".

E acrescenta: "Ademais, começámos a colaborar com várias associações da zona e temos várias ideias, que esperamos concretizar no futuro, como a organização de encontros de grupos de utentes dentro da USF (mães, diabéticos, etc.), a criação de panfletos para os utentes estrangeiros, etc."




"R
eduzir a distância entre médicos e utentes"

Na USF da Baixa os médicos não usam bata, "só para a realização de procedimentos". Esta é uma das medidas que reflete a cultura organizacional que está a ser implementada, fazendo parte de um processo de criação de empatia com os utentes. 

Martino Gliozzi refere que usou a bata durante o seu internato: "não tenho nada contra e estava acostumado a usá-la; parte da equipa médica não". E explica a ideia: 

"Quando criámos a nova equipa, optámos por não utilizar a bata, com o objetivo de tentar reduzir a distância entre médicos e utentes, de tentar mudar o modelo paternalista (´o Sr. Dr é que sabe`); penso que foi útil neste sentido, dado que tínhamos que criar novas ´relações terapêuticas` com os nossos utentes".

Afirma ainda existirem "muitas técnicas que se podem usar no sentido de melhorar a relação com os utentes, que têm a ver com o estilo de comunicação, a organização do espaço/gabinetes". E sublinha: "penso que somos um equipa sensível a estes aspectos".



"Muita criatividade" na comunicação com os utentes 

Dada a elevada componente multicultural do Martim Moniz, com cidadãos de dezenas de países, sendo provavelmente a zona de Portugal mais simbólica nesse contexto, "claramente a barreira linguística tem um enorme impacto na nossa prática diária".

Recordando que 27% dos utentes são de origem estrangeira, "sendo a média do nosso ACES de cerca de 10%", Martino Gliozzi explica que todos os médicos e enfermeiros falam inglês fluentemente, "mas parte dos estrangeiros não fala português, nem inglês".

As comunidades mais representadas na USF da Baixa são as do Bangladesh, Nepal, Brasil, India e China. "Claro que a comunicação torna-se mais difícil com os utentes que não falam nem português nem inglês ou onde a presença de um tradutor (o companheiro e/ou os filhos) na consulta pode criar barreiras de outro tipo", refere. 

Atentos a esta realidade, aos profissionais é exigida "muita criatividade, usando imagens no computador, desenhos e gestos". Nesse sentido, será importante concretizar "a tradução dos nossos documentos (como o guia do utente) em várias línguas (inglês, bengali, chinês, etc.) e criar documentos de apoio à consulta como a tradução em várias línguas de doenças, sinais e sintomas mais frequentes".

O responsável chama também a atenção para as barreiras culturais: "quanto maior a distância que existe entre a cultura do profissional e aquela do utente, mais difícil a comunicação e a compreensão recíproca". Há, contudo, uma garantia: "Temos muito trabalho pela frente, mas a nossa equipa tem as condições e está com vontade de superar estas barreiras."



Equipa jovem: "mais inexperiente", mas com "um enorme potencial"

A equipa da USF da Baixa tem, neste momento, 8 médicos recém-especialistas, "uma opção minha e dos primeiros médicos que aceitaram o desafio há quase dois anos", explica Martino Gliozzi. O objetivo é procurar "manter esta característica".

Na sua opinião, "há uma maior flexibilidade, maior entusiasmo, mais afinidade com as novas tecnologias e talvez sejamos também menos ´desiludidos`".

Considera que o internato de MGF nos últimos anos "progrediu muito" e acredita que a nova geração de médicos de família tem "um enorme potencial". Contudo, faz questão de frisar que "há médicos de família da ´velha guarda` de grande qualidade".

Estes profissionais com mais experiência não terão tido, inclusive, a vida facilitada. Martino Gliozzi refere, nomeadamente, que muitos "não tiveram a sorte que nós tivemos de realizar um Internato de qualidade e, de uma maneira geral, bem organizado". Ou seja, "dependia mais da ´boa vontade` e do ´amor pela camisola` de cada profissional". Desta forma, existe assim, eventualmente, "uma maior heterogeneidade nesta classe médica".

Martino Gliozzi faz questão de sublinhar ter plena consciência de que "somos uma equipa mais inexperiente e é mais fácil cometer ´erros de juventude`". Mas, fazendo um balanço, acredita que "os prós são mais que os contras."




Dispostos "a mudar hábitos e criar novas dinâmicas"

Quanto à equipa que lidera, é com um misto de paixão e de orgulho que afirma: "diria que todos os profissionais que aceitaram este desafio têm uma grande vontade de mudar as coisas, têm amor à camisola e estão dispostos a pôr-se em discussão, a mudar hábitos e criar novas dinâmicas".

As qualidades que o responsável refere são encaradas como vitais no processo de construção e consolidação da cultura predominante na unidade:

"Como disse, criámos uma equipa totalmente de ´novo´, por isso tivemos que conhecer-nos e aprender a trabalhar juntos. Estávamos disponíveis a mudar as nossas práticas, não havia nada já decidido/estabelecido; tivemos que criar as nossas regras de funcionamento, vimos as coisas mudarem, percebemos o que estava a correr bem (por exemplo uma melhor acessibilidade às consultas do dia, os indicadores de desempenho a crescer) ou, viceversa, quando era preciso mudar o nosso caminho."

Os profissionais vieram em parte de outras unidades do ACES Lisboa Central, de outros ACES (Cascais, Barreiro, etc.) e dos cuidados secundários (enfermeiros dos hospitais Santa Maria e Dona Estefânia, do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, entre outros). Há ainda quem tenha feito o internato de Medicina Geral e Familiar na cidade do Porto ou fora de Portugal (Espanha).


Médico de família: "uma sensação incrível"

Martino Gliozzi chegou a Portugal em 2009, "precisamente com a intenção fazer o internato em Portugal". Optou por sair de Itália, onde estudou em Bolonha, por várias razões, "mas sobretudo pela falta de transparência que existia na prova de seriação para a entrada no Internato e pela escassa qualidade na formação do Internato".

Fez o Erasmus em Coimbra e teve a oportunidade de conhecer Lisboa "e de apaixonar-me por esta cidade. Ou seja, quando decidi sair de Itália, escolhi Portugal pela qualidade de vida, pela beleza da cidade e pela qualidade de formação (que tinha conhecido em Coimbra)."

 

O internato decorreu na USF do Arco, perto do Rato. "Devo muito à equipa desta Unidade, à qual continuo a ter uma grande ligação afectiva", afirma, recordando a sua orientadora: "a Dra. Graça Santos, é um exemplo do que dizia há pouco, uma médica da ´velha guarda` que trabalha com grande qualidade, apaixonada pelo seu trabalho, que foi um grande exemplo de honestidade e dedicação".

Assegurando que "não estaria cá hoje se não tivesse tido uma mestre como a minha ex-orientadora", Martino Gliozzi reconhece ter boas recordações: "penso que foi uma etapa fundamental da minha vida pessoal e profissional, cresci imenso. Saí da Faculdade, como muitos médicos italianos, com insuficiente formação prática, e quando saí do Internato sentia-me capaz de ser um médico de família... uma sensação incrível."



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