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USF Travessa da Saúde: todos contra a violência doméstica

“Mas, Dr.ª, não é normal que um marido bata na mulher quando ele é o homem da casa?” A pergunta pode parecer insólita, mas foi o que ouviu a médica que lidera a equipa do projeto “USF Travessa da Saúde contra a Violência Doméstica”. Trata-se de um grupo formado por uma médica, uma enfermeira e uma secretária clínica da USF Travessa da Saúde, em Sacavém, que visa prevenir, diagnosticar e tratar a violência doméstica como um todo, contando com o apoio dos restantes elementos daquela Unidade e de outras entidades da comunidade.

Nesta USF, coordenada por Cláudia Ho, são vários os casos de violência doméstica que chegam aos gabinetes dos médicos e enfermeiros de família, apesar de na maioria das situações não ser fácil para a vítima contar o que se passa em casa.

“Muitas mulheres vêm às consultas com queixas de ansiedade, cefaleias, dores, problemas gastrenterológicos ou apresentando um quadro depressivo que se arrasta no tempo e que não melhora com farmacologia, o que nos leva a suspeitar que algo se passa”, refere a responsável pelo projeto.



Mesmo quando a mulher tem consciência de que a agressão não é normal, há outras razões que a impedem de pedir ajuda, como nos confirma uma enfermeira da equipa. “Há situações de dependência económica, mas também psicológica, ou seja, são mulheres – a maioria das vítimas – que não conseguiram ainda resolver carências afetivas que já vêm da infância”, conta.

A sensação de fragilidade conduz, assim, com alguma frequência, à chamada síndrome de Estocolmo: “Elas tendem a sentir afeto pelo agressor, desculpando-o porque é bom pai, é trabalhador ou até lhes trouxe uma flor no dia anterior...”



Uma outra médica da USF aponta ainda uma razão diferente para não se dar continuidade à queixa ou para nem sequer se ir à Polícia: “As crenças contribuem bastante, lembro-me que uma senhora me disse que não podia acusar o marido por ter medo que lhe fizessem bruxaria...”

Violência doméstica: mitos e receios dos profissionais de saúde

Face a este drama social e que afeta sobremaneira a saúde, a USF Travessa da Saúde iniciou, em 2016, várias iniciativas que integram o projeto “USF Travessa da Saúde contra a Violência Doméstica”. “Os objetivos gerais são sobretudo identificar as mulheres e famílias da USF que são alvo de violência doméstica, criando-se assim ferramentas de acompanhamento e monitorização para que se possa apostar no empoderamento das vítimas”, explica a responsável do projeto.

Nesse sentido, foi criado um grupo de apoio que se dedica a fazer trabalhos manuais: “É uma forma de evitar o isolamento, melhorar a auto-estima e também permitir a partilha interpares, de modo a que as mulheres percebam que não são as únicas a passar por esta terrível situação e que se pode pôr um travão e refazer a vida.”


Elementos da equipa da USF Travessa da Saúde

Existe ainda o “Espaço Saúde Mulher”, no qual se aborda, todos os meses, um tipo diferente de violência e a forma de combater o mesmo, além de se distribuirem panfletos com informações de contactos de apoio na casa-de-banho, para quem quer levar essa informação mantendo o anonimato.

Neste projeto envolvem-se os diferentes grupos profissionais da Unidade, médicos, enfermeiros e secretários clínicos que “receberam formação interna para saberem como ajudar na prevenção e no diagnóstico-atuação”.



No âmbito desta iniciativa, e para que se obtivessem dados epidemiológicos e a possibilidade de replicar a iniciativa noutros ACES, realizou-se, entre janeiro e junho deste ano, um projeto-piloto no qual se contou com o apoio de entidades externas como a Equipa para a Prevenção da Violência em Adultos, os Núcleos de Apoio a Crianças e Jovens em Risco, a PSP, associações de apoio à vítima e o Serviço de Psiquiatria do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures.

Ao fim de 6 meses, foram contabilizados 34 casos de violência doméstica. As principais dificuldades sentidas durante o projeto-piloto tanto tiveram origem na própria vítima – com agravamento se se tratava de um menor – como no profissional e nos próprios serviços de saúde.

"olhar para este crime como um problema de saúde"

Na USF Travessa da Saúde, a equipa envolvida no projeto não tem dúvidas de que ainda há muito trabalho a fazer para se conseguir dar resposta a este flagelo social. “Existem muitos mitos, crenças e estereótipos de género, como achar-se que a violência ainda é uma questão da esfera privada e da responsabilidade de outras entidades.” 

Outra dificuldade apontada prende-se com o facto de "não se olhar para este crime como um problema de saúde, além de que existe ainda o medo de possíveis repercussões profissionais, a tendência para desculpabilizar o comportamento do agressor ou até, em última instância, as vivências de violência no passado ou no presente.”




A falta de formação durante e após o curso de Medicina também não ajuda. “Existe um grande desconhecimento das estratégias de intervenção e uma visão muito biomédica, quando o utente deve ser avaliado sob o ponto de vista biopsicossocial”, considera a responsável.

Os problemas não ficam por aqui. Da parte dos serviços de saúde, a médica realça “as interrupções durante as consultas, a sobrecarga assistencial, a falta de conhecimento e coordenação entre diferentes serviços internos e externos, a dificuldade em gerir a presença do agressor e não existir o recurso a interprétes quando a vítima não fala português”.

Equipa atenta "a todo o tipo de violência"

Na continuação do projeto, pretende-se também consolidar a ligação ao Serviço  de Psiquiatria do Hospital Beatriz Ângelo, para ajudar as vítimas, mas também os agressores: “A violência acontece muitas vezes associada ao alcoolismo, à doença psiquátrica grave descompensada ou não psiquiátrica grave descompensada ou não tratada – esquizofrenia, doença bipolar, etc. – e se não se resolver este problema de base, mesmo existindo queixa-crime e punição, a realidade não vai mudar.”

A médica enfatiza que na USF estão atentos "a todo o tipo de violência", não apenas à de género: “Há muitos idosos a viver em condições precárias, com filhos que apenas querem a sua reforma, casos de abuso sexual e mutilação genital feminina, entre outros.”

No fundo, “temos de aproveitar o facto de que mais facilmente se fala com o médico ou o enfermeiro de família do que com uma associação ou com as autoridades”.

“A nossa população é muito carenciada"
 

A luta contra a violência é uma das várias apostas de uma USF que, desde a sua criação, em 2010, investe de forma significativa em projetos sociais, como forma de promover a saúde dos utentes da União de Freguesias de Camarate, Unhos e Apelação, no concelho de Loures.

Para Cláudia Ho, a coordenadora da USF Travessa da Saúde, este é um caminho inevitável: “A nossa população é muito carenciada e as questões sociais afetam bastante o seu estado de saúde físico e psíquico.”

Localizada em Sacavém, entre o bairro social Quinta do Mocho e um condomínio privado, esta USF partilha o espaço com a USF Sacavém. “A equipa que a criou veio, maioritariamente, do anterior Centro de Saúde de Camarate, que se situava num prédio de 4 andares, com escadas e pouco espaço.”




A multiculturalidade desta região é um dos grandes desafios para os profissionais. “Há gente de Cabo Verde, da Guiné Bissau, de São Tomé e Princípe, do Paquistão, da Índia, pessoas de etnia cigana, que são portuguesas mas que têm usos e costumes muito próprios... Os hábitos são muito diferentes, o que nos obriga a conhecer as suas especificidades e a respeitar a diferença, o que também é muito enriquecedor do ponto vista humano para todos nós.”

O único senão é quando a cultura pode pôr em causa a saúde, mas mesmo assim é preciso apostar no equilíbrio. “Por vezes, é necessário explicar, com calma e respeito, que certos comportamentos podem ser prejudiciais e que, por esse motivo, não devem continuar. Relativamente a outros basta existir uma adaptação da nossa parte.”

Mas não são estes os casos que preocupam a médica. “Deparamo-nos com muitas situações de violência e como são pessoas muito pobres têm de ter 2 ou 3 empregos, o que as leva a deixar os filhos muito pequenos em casa, contribuindo assim para que mais facilmente integrem gangs, tenham comportamentos sexuais de risco desde cedo, consumam drogas, etc.”


Cláudia Ho

Sendo coordenadora desde dezembro de 2017, Cláudia Ho diz que tem aprendido muito. “O mais exigente é a gestão de recursos humanos, ou seja, as emoções, porque isso não se aprende nos livros da mesma forma que estudamos os passos de uma auditoria, por exemplo...”

No futuro, a médica espera consolidar os vários projetos sociais da USF, nunca esquecendo a vertente de prevenção própria dos cuidados de saúde primários: “É a nossa principal missão e, na minha opinião, é fundamental capacitar os cidadãos para que saibam cuidar da sua saúde e autogerir a sua doença, isto é, não damos apenas a cana, ensinamos a pescar.”

No momento presente mantém-se a vontade e a dedicação de uma equipa que aposta na visão biopsicossocial de cada utente, para se evitarem os problemas de saúde associados, por exemplo, à violência, e também para se prevenir que haja mais mulheres a pensarem que o marido tem direito em agredir por “ser o homem da casa”.



A reportagem completa sobre a USF Travessa da Saúde pode ser lida na edição de novembro do Jornal Médico dos cuidados de saúde primários. Inclui diferentes perspetivas de profissionais de Medicina Geral e Familiar, Enfermagem, Secretariado Clínico e Internato Médico da unidade, além de testemunhos de utentes.



De periodicidade mensal, Jornal Médico dos cuidados de saúde primários é distribuído em todas as unidades de saúde familiar do país, sendo uma ferramenta única na partilha e promoção de boas práticas e projetos inovadores implementados nos cuidados primários.

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