Opinião
A gestão do Hospital Público
Alexandre Lourenço
Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)
Em Portugal, a profissão de administrador hospitalar, então chamada de “provedor”, vem expressa no “Regimento do Hospital de Todos os Santos” de 1504. Em 1948, Coriolano Ferreira, enquanto chefe dos Serviços Administrativos dos Hospitais da Universidade de Coimbra, relança a profissão através da fundação da revista Hospitais Portugueses. Desde o primeiro número, diz ao que vem:
“Necessitamos não só́ dos edifícios e do seu recheio, mas sobretudo de bons médicos, bons enfermeiros e bom pessoal administrativo. A formação técnica dos médicos e a dos enfermeiros está entregue a escolas próprias. Mas o pessoal administrativo, esse é que, até hoje, não tem onde aprenda nem quem o ensine (...). Entre nós, tirando duas ou três exceções, vivemos em pleno domínio do amadorismo e das improvisações que, embora bem-intencionadas, estragam muito dinheiro que é sangue da nação (...).”
A 27 de abril de 1968 é publicado o Estatuto Hospitalar e o Regulamento Geral dos Hospitais, estabelecendo pela primeira vez a natureza empresarial do hospital e o desenvolvimento dos recursos humanos, iniciando as carreiras de médico, enfermeiro, administrador e farmacêutico:
“A administração dos hospitais (...) tornou-se tarefa de profissionais, com preparação cuidada e estatuto adequado, visto que a mobilização de meios financeiros e humanos nos serviços de saúde atinge enorme volume e os prejuízos decorrentes de uma gestão pouco esclarecida podem ser importantíssimos, tanto do ponto de vista económico como social e humano.”
Em 1980 é, finalmente, regulada a carreira de Administração Hospitalar. Nesta carreira, os administradores hospitalares pertencem a um quadro único no Ministério da Saúde, sendo remunerados como técnicos superiores. Apenas através de concurso podem ser nomeados em comissão de serviço para posições nos hospitais, auferindo como administradores de terceira, segunda ou primeira classe.
Em paralelo, a carreira de Administração Hospitalar desenvolve-se em graus (quatro). A base da carreira é o 4.º grau e a progressão é feita por concurso após 3 anos no grau anterior, e avaliação positiva pela Comissão de Avaliação. No caso do 1.º grau, é ainda exigida apresentação e discussão de trabalho em sede de análise da Comissão de Avaliação.
Pode parecer estranho para muitos, mas o mecanismo de avaliação não tem repercussão direta na remuneração. Por exemplo, podemos ter administradores hospitalares no 1.º grau (topo da carreira) e ter um vencimento de início de carreira. Ou seja, para auferir como administrador hospitalar terá que concorrer e ficar colocado num hospital. Desde 2001 que não é aberto qualquer concurso nos hospitais — há perto de 20 anos que os administradores hospitalares não têm progressão com efeitos remuneratórios. Mesmo assim, a última avaliação “em graus” é de 2008.
Este esclarecimento vem a propósito do recente despacho do Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Saúde. A maioria dos meus colegas alvo do despacho ainda se encontrava em situação de 4.º grau (uma espécie de estagiários) há mais de 20 anos.
É um despacho que nos merece reconhecimento. Não por permitir aumentos salariais ou por serem aplicados retroativos, porque não permite!! Repito, não permite. Apenas por ser justo e reconhecer estes profissionais, muitos deles com provas dadas em lugares de elevada responsabilidade.
Compreendo o desconhecimento de muitos e o populismo de outros nas afirmações que foram sendo proferidas. Algo é certo, quem sabe que mente apenas para aproveitamento próprio ou de classe apenas se define. Pobres daqueles que para vencer um argumento precisam de uma mentira. Por outro lado, importa destacar que os administradores hospitalares sempre defenderam carreiras dignas para os demais profissionais de saúde. Não esperamos comportamentos distintos destes para connosco.
Passados 40 anos, ao contrário das outras profissões da área da saúde, a carreira de Administração Hospitalar não mereceu revisão. Muitas vezes, devido ao pudor dos próprios administradores em relação às outras carreiras do setor.
Assim, há anos que não são avaliados, não têm concursos, não têm ingressos, os contratos individuais de trabalho não estão totalmente integrados na carreira, etc., etc., com evidente impacto na qualidade da gestão das instituições, onde continuam a imperar demasiados curiosos e paraquedistas.
Em 1952, dizia a revista Hospitais Portugueses: “Um administrador hospitalar não se faz de um momento para outro. Precisa de profundo estudo, aliado a grandes condições naturais. Estamos longe do tempo dos amadores que aprendiam do seu ofício nos próprios lugares de comando (…).”
Sejamos claros, em 2020, a escolha permanece evidente para a gestão de unidades de saúde: profissionais preparados ou curiosos/paraquedistas. Concordamos que é essencial rever a formação dos gestores de serviços de saúde, o seu recrutamento, a sua avaliação e formação contínuas. Por isso, defendemos a revisão da carreira de administração hospitalar. Não por conveniência própria, mas por acreditarmos que é essencial ao desenvolvimento do acesso universal a cuidados de saúde.
Ora, como dizia Coriolano Ferreira, na primeira edição da Hospitais Portugueses, em 1948: “A intuição e a boa vontade são necessárias, mas insuficientes.” O caminho da adequada gestão de serviços de saúde faz-se pela profissionalização das funções de gestão. É nesse caminho que acreditamos, encorajados pelo exemplo do passado, que nos enobrece, e obrigados pela necessidade de resposta à população, aos profissionais de saúde, às famílias e a cada cidadão.
O artigo pode ser lido no Hospital Público de novembro/dezembro de 2020.