Opinião

«Um olhar atento sobre o momento atual das Unidades de Cuidados na Comunidade»


Pedro Melo

Especialista Enf. Comunitária. Prof. auxiliar convidado Instit. Ciências da Saúde / Escola Enfermagem Univ. Católica Portuguesa



No contexto do III Congresso da Associação de Unidades de Cuidados na Comunidade (AUCC), decorrido nos passados dias 17 e 18 de março de 2022, foi apresentado o primeiro estudo de caracterização das Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC).

Este estudo, solicitado pelo presidente da AUCC, o Sr. Enf. José Barbosa Lima, foi uma forma de potenciar uma análise do estado de arte destas unidades e potenciar o cumprimento do artigo 5.º do Estatuto da AUCC, que indica como desiderato da Associação, cito, “a promoção da otimização do SNS, melhorando o acesso, a adequação, a efetividade, a eficiência e a qualidade dos cuidados de saúde das UCC”.

Como membro da Direção da AUCC e como investigador na área dos Cuidados à Comunidade, não hesitei em contribuir para este estudo, genialmente idealizado pelo presidente da AUCC.

Em 2019, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento das UCC, que teve a representação da AUCC, elencou 6 conjuntos de recomendações para a otimização destas unidades, relacionados com a gestão, os recursos humanos, os recursos físicos, os recursos materiais, os sistemas de informação e outras recomendações mais genéricas.

Considerando um espaço de 4 anos entre este trabalho e a atualidade, o estudo que desenvolvemos veio contribuir para uma visão mais atualizada do estado de arte das UCC, para promover recomendações para o seu desenvolvimento no futuro.

Metodologia

Desenvolvemos um estudo exploratório descritivo, através da aplicação de um questionário construído com três partes.

Uma primeira de caracterização das UCC, com a indicação da ARS que integra, a inclusão numa ULS, o início de funções, a dispersão geográfica, o número de habitantes abrangidos, a especialidade do coordenador e a categoria profissional do gestor, a caracterização dos recursos humanos, dos projetos que integra, a existência de ECCI, o acolhimento de estudantes em estágios / ensinos clínicos / internatos.

Numa segunda parte foi analisada a satisfação das equipas em relação a diferentes domínios, desde a perceção de valorização da UCC no processo de reconfiguração dos CSP e condições para o exercício profissional até ao sentido de valorização de estruturas como o Ministério da Saúde, o Ministério das Finanças, a ACSS, os SPMS, a DGS e, em proximidade, os departamentos de contratualização, a ERA, as equipas de Gestão do ACES e as autarquias e associações como a própria AUCC.

Foram ainda questionados os níveis de satisfação com os processos de contratualização, do desenvolvimento das carreiras dos profissionais e, por exemplo, com os incentivos.

Na última parte foram questionados os níveis de prioridade atribuídos à resolução de diferentes problemas, desde a contratualização, relação intra e interinstitucional, recursos humanos, físicos e materiais, entre outros.

O questionário foi pré-testado e depois de restruturado foi aplicado ao universo das 266 UCC, via email dos coordenadores das mesmas, a partir da AUCC.

Resultados

Como principais resultados, destacamos uma taxa de resposta de 46%, representando uma margem de erro de 5,47% e um nível de confiança de 90%. A maior parte das UCC respondentes pertencem à ARS Norte (45,1%), seguidas da ARSC (25,4%), ARSLVT (15,6%), ARS Alentejo (9,8%) e ARS Algarve (4,1%).

81,1% das UCC não estão incluídas numa Unidade Local de Saúde, a maior parte (70,5%) tem uma dispersão geográfica de mais de 40 Km2 e a maior parte (41,8%) abrange menos de 40.000 habitantes.

No que respeita à especialidade do coordenador da UCC, na maior parte (43,4%), o coordenador é especialista em Enfermagem Comunitária ou Enfermagem de Saúde Pública, ou ainda na nova área de Enfermagem de Saúde Comunitária e de Saúde Pública.

A seguir estão os coordenadores especialistas em Enfermagem de Reabilitação (19,7%), Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (15,6%) e Saúde infantil e Pediátrica (11,5%). Das restantes especialidades, a percentagem é residual, menos que 6%.

No que respeita a acreditação ou estando em processo de acreditação, 91% das UCC não tem ou está em processo de acreditação. 65,6% das UCC tem manual de boas práticas.

Analisando os recursos humanos das UCC, verificamos que, no que respeita aos enfermeiros e a tempo inteiro, os profissionais que existem em maior número de UCC são os enfermeiros especialistas em Enfermagem de Reabilitação (82%). Seguem-se os especialistas em Enfermagem Comunitária / Saúde Pública ou Enfermagem de Saúde Comunitária e de Saúde Pública (78%) em mesma percentagem de UCC com enfermeiros de Cuidados Gerais a tempo inteiro.

Os enfermeiros de Saúde Materna e Obstétrica a tempo integral encontram-se em 65% das UCC, sendo as outras áreas de especialidade existentes em menos de metade das UCC. Ainda no que respeita a enfermeiros a tempo parcial, encontramos em maioria os enfermeiros de Cuidados Gerais, em 17% das UCC. Todos os restantes são vestigiais.

Analisando os outros recursos humanos, a tempo integral, são os assistentes técnicos que ocupam o espaço da maioria das UCC (1 em 31% ou 2 em 6%), seguidos dos assistentes operacionais (1 em 19%, 2 em 9% e 3 ou mais em 4%) e dos fisioterapeutas (1 em 13% das UCC). Os médicos e assistentes sociais são identificados em número único em 6% e 5% das UCC, respetivamente.

Já os nutricionistas apenas em 2% das UCC se identifica a existência de 1 e psicólogos em 1%, assim como terapeutas ocupacionais.

A tempo integral, são os assistentes sociais que ocupam a maior posição (1 em 70% das UCC, 2 em 14% e 3 ou mais em 2%). Seguem-se os nutricionistas (1 em 53% e 2 em 3% das UCC), os assistentes técnicos (1 em 48%, 2 em 4% e 3 ou mais em 1% das UCC) e os médicos (1 em 44%, 2 em 7% e 3 ou mais em 5% das UCC).

Os fisioterapeutas a tempo parcial ocupam 35% das UCC com profissional único, seguidos dos assistentes operacionais (1 em 24%, 2 em 3% e 3 ou mais em 3% das UCC) e dos psicólogos (1 em 24% das UCC).

Com percentagens inferiores a 5% das UCC encontram-se os terapeutas da fala (1 em 4% e 2 em 1%), os terapeutas ocupacionais (1 em 4% das UCC), os técnicos de saúde ambiental (1 em 3% das UCC) e técnicos de exames complementares de diagnóstico e motoristas (existindo um profissional de cada em 1% das UCC a tempo parcial).

No que respeita a projetos, a maioria das UCC (99,2%) apresenta projetos na área da Saúde Escolar, seguindo-se os projetos na área da Saúde Materna (82%), das NACRJR (77,9%), das CPCJ (77%), da Intervenção Precoce (73,8%), Rede Social (73,8%) e Prevenção da Violência nos Adultos (66,4%) das UCC. Os projetos relacionados com as outras áreas existem em menos de 70% das UCC, sendo os projetos menos frequentes os relacionados com a Saúde Ocupacional (referidos por 2,5% das UCC).


Pedro Melo

Realça-se ainda nos resultados que 14,9% das UCC referem não se articular com a Unidade de Saúde Pública, 10,7% das UCC não conhecem o Diagnóstico Local de Saúde da sua população (ainda que a maioria conheça) e ainda 12,3% não conhecem o Plano Local de Saúde.

99,2% das UCC têm ECCI, sendo que em 74,4% das UCC não existe equipa exclusiva para este projeto (sendo os recursos partilhados com os outros projetos da UCC).

97,5% das UCC acolhem estudantes, maioritariamente dos cursos de especialidade em Enfermagem (92,4%) e da licenciatura em Enfermagem (89,1%). Seguem os estudantes de internato de especialidade (26,9% das UCC) e do ano comum de Medicina (20,2% das UCC). 14,3% das UCC recebem estudantes de Fisioterapia. Os estudantes de Nutrição, Psicologia e Serviço Social ocupam menos de 6% das UCC.

No que respeita à investigação, 75,4% das UCC têm parcerias com Centros de Investigação em Enfermagem, sendo todos os restantes Centros de Investigação parceiros em menos de 4% das UCC (ocupando os Centros de Investigação Médicos a maior parte destas parcerias vestigiais, em 3,3% das UCC).

Analisando a satisfação das equipas das UCC, na perceção dos seus coordenadores, destacamos com níveis menores de satisfação:

A valorização das UCC pelo Ministério das Finanças (com níveis de insatisfação extrema em 57,4% das UCC).

A valorização das UCC pela DGS (com níveis de insatisfação extrema em 37,7% das UCC e satisfação mediana em 43,5%)

A valorização das UCC pelo Ministério da Saúde (com níveis de insatisfação extrema em 34,5% das UCC e satisfação mediana em 39,8%)

A valorização das UCC pela ACSS (com níveis de insatisfação extrema em 33,6% das UCC).

A valorização das UCC pelos SPMS (com níveis de insatisfação extrema em 26,2% das UCC e satisfação mediana em 46%).

A valorização das UCC pelo departamento de contratualização (com níveis de insatisfação extrema em 32% das UCC e de satisfação mediana em 44,4%)

A valorização da UCC pela ARS A Valorização das UCC pelos SPMS (com níveis de insatisfação extrema em 29,5% das UCC e de satisfação mediana em 39,3%).

A maior parte das UCC (54,1%) encontra-se medianamente satisfeita com a valorização da UCC pela equipa de gestão do ACES que integra.

Já a AUCC ocupa um nível de satisfação elevado com a sua valorização das UCC em 43,14% das UCC.

No que respeita às autarquias, mais de 25% das UCC estão satisfeitas com as juntas de freguesia e mais de 30% com as câmaras municipais.

No que respeita a recursos materiais, 79,4% das UCC estão insatisfeitas com os recursos que têm. A maior parte das UCC indica falta de material de ajudas técnicas e de reabilitação, viaturas (preferencialmente com motoristas), mobiliário, material de informática com acesso à internet e ainda modelos anatómicos para educação para a sexualidade.

No que respeita aos níveis de prioridade de resolução de problemas das UCC, apresentamos na figura seguinte o TOP 13 de problemas a resolver nas UCC:

Destacamos ainda que cerca de 40% das UCC sugerem a atualização ou a criação de novos indicadores de contratualização, reforçando o valor de indicadores além das ECCI, nomeadamente, a potenciação de indicadores de resultado relacionados com a Saúde Escolar, Saúde Mental, Saúde Infantil e Saúde Materna e Obstétrica.



Discussão

As UCC, estando nas prioridades do Governo para a próxima legislatura, no que respeita à saúde, precisam de ver resolvidos vários problemas estruturantes para o cumprimento da sua missão de cuidar de pessoas e grupos mais vulneráveis e no que respeita ao acesso a cuidados especializados, principalmente de Enfermagem, mas também nos cuidados às comunidades.

Desde logo os recursos humanos, no que respeita aos cuidados de Enfermagem. É preciso reforçar os recursos humanos em Enfermagem de Saúde Comunitária e de Saúde Pública, considerando a natureza do trabalho das UCC, que exige a gestão de programas e projetos e a capacitação de grupos e comunidades, devendo, por isso, 100% das UCC ser dotadas por estes enfermeiros especialistas, que no momento ocupam a segunda posição, existindo a tempo integral em menos de 80% das UCC.

Os especialistas em Enfermagem de Saúde Mental, que atualmente existem a tempo integral em menos de metade das UCC, precisam também de ver um reforço, considerando que a Saúde Mental é uma prioridade em Portugal, com claras previsões de agravamento no período pós-pandémico. É ainda grave a inexistência de enfermeiros especialistas na área da Pessoa em Situação Paliativa, existentes apenas em 6% das UCC.

Claro que as outras áreas de especialidade em Enfermagem precisam também de reforço. Ainda que a Enfermagem de Reabilitação esteja presente a tempo integral, em 82% das UCC, é preciso analisar as dotações associadas a um Portugal altamente envelhecido e com níveis elevados de dependência, assim como a Saúde Infantil e Materna, garantindo o acesso das crianças e grávidas aos cuidados especializados que merecem.

Nas outras áreas profissionais, é preciso investir claramente em psicólogos (existentes a tempo parcial em apenas 24% das UCC), quando, voltamos a referir, a Saúde Mental exige uma clara priorização. Mas também é preciso investir em mais nutricionistas, fisioterapeutas e assistentes sociais.

Menos de metade das UCC têm assistentes técnicos e menos de 30% assistentes operacionais. E estamos, no caso de todos estes profissionais não enfermeiros, a falar da sua existência a tempo parcial.

Seria importante fazer um estudo com as Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP) e entender as dificuldades de colaboração com as UCC, ou considerar aumentar os recursos humanos a tempo integral nas várias áreas profissionais nas UCC, que precisam, de facto, de uma equipa multidisciplinar.

Os baixos níveis de satisfação das UCC com as estruturas governativas (Ministérios da Saúde e das Finanças e Direção-Geral da Saúde) exigem uma aproximação destas estruturas, considerando a valorização dos contributos únicos das UCC para a saúde das comunidades, promovendo carreiras satisfatórias e motivadoras dos seus profissionais, regimes de incentivos coadunados com o valor que acrescentam aos SNS e ainda uma comunicação efetiva com estas unidades.

Mas também localmente é preciso melhorar a comunicação e valorização com as ARS, as estruturas de contratualização, as Equipas Regionais de Apoio e os próprios órgãos de gestão dos ACeS.

Considerando a natureza da missão das UCC, é prioritário resolver problemas estruturantes relacionados com as carreiras, principalmente dos enfermeiros, grupo profissional maioritário nas UCC, a atribuição de incentivos financeiros e institucionais compatíveis com o valor único que acrescentam, a atualização dos indicadores de contratualização, a disponibilização de viaturas e motoristas, de material informático e acesso à internet e ainda melhorar os sistemas de informação (nomeadamente para a documentação dos cuidados às comunidades) e a sua relação com a monitorização dos indicadores contratualizados.

Conclusão

As Unidades de Cuidados na Comunidade são unidades funcionais dos Agrupamentos de Centros de Saúde únicas e insubstituíveis nos cuidados de proximidade às pessoas, grupos e comunidades mais vulneráveis.

Durante a fase pandémica, foram unidades de resposta imprescindível ao empoderamento das comunidades para o controlo da pandemia (nomeadamente nas Estruturas Residenciais para Idosos), mas também nos processos de vacinação (tendo as equipas sido mobilizadas para os Centros de Vacinação Covid).

No momento atual, ainda que com o alívio da situação pandémica, o facto de terem sido suspensos quase todos os projetos e consultas das UCC e com o agravamento claro da saúde mental dos portugueses, do descontrolo da gestão do regime terapêutico das pessoas com doença crónica, dos desafios de acessibilidade na saúde materna e com o agravamento do estado dos prestadores de cuidados que viram uma sobrecarga nos cuidados, entre muitos outros problemas, as UCC, são, de facto, as unidades de referência para promover o acesso das comunidades e pessoas aos cuidados de que precisam.

O estudo realizado e aqui apresentado revela muitas fragilidades, quer em recursos humanos, quer em recursos materiais e ainda níveis de satisfação muito baixos condicionantes da motivação dos profissionais, em aspetos basilares para a garantia da qualidade dos cuidados prestados pelas Unidades de Cuidados na Comunidade.

Saiba o Governo cumprir a missão a que se propôs e as UCC estão disponíveis para continuar a otimizar os cuidados que prestam com a qualidade a que têm habituado os portugueses. Fortalecendo as UCC estamos a fortalecer os portugueses e estamos a tornar mais saudável e empoderado Portugal.

 

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