Cirurgia inédita de ciclopexia direta após trauma ocular permite recuperação da visão
Apesar de a técnica estar descrita desde os anos 90, a falta de sensibilização para este diagnóstico levou a que só em 2021 tenham sido documentadas, em Portugal, as primeiras ciclopexias diretas após trauma ocular. Nesse ano, Santa Maria terá realizado as duas primeiras intervenções. O objetivo é a sua ampliação a nível nacional.
“A partir do momento em que percebemos que a intervenção é exequível e que ficámos mais sensibilizados para procurar estes casos, a prática arrancou e só no espaço de três meses realizámos duas cirurgias”, começa por referir Luís Abegão Pinto, o oftalmologista do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte (CHULN) que conduziu estas intervenções no Hospital de Santa Maria.
Tratando-se de uma cirurgia de correção, “é preciso que, anteriormente, uma pessoa tenha tido um traumatismo de tal maneira grave que tenha levado ao “desencaixe” da esclera face à coroide, mas ainda estivesse num estado que permitisse a aposta na sutura”.
"O doente só possuía uma capacidade de visão de 40%.”
Partindo para um exemplo prático, o oftalmologista recorda o caso do primeiro doente operado, um rapaz de 24 anos que, enquanto fazia bricolage, feriu um dos olhos com um alicate, provocando um trauma ocular grave. Após ter sido suturado de urgência, em fevereiro, o cenário parecia ser favorável, até tudo ter começado a piorar, um mês depois.
Luís Abegão Pinto explica o fenómeno: “Enquanto algo estiver edemaciado, não será tão fácil identificar todas as sequelas, pelo que só quando o olho começou a desinchar se percebeu que as pressões oculares tinham começado a baixar e que o doente só possuía uma capacidade de visão de 40%.”
Nesse momento, podia retirar-se uma conclusão: “Tinha que existir um ponto de fuga que não era visível a olho nu, mas apenas através de exames por ecografia.” Só aí foi possível verificar-se que o trauma ocular havia deslocado parte da coroide da sua localização.
Luís Abegão Pinto
“O rapaz voltou a ver 100% com umas tensões fantásticas"
Apesar de a cirurgia de correção permitir uma melhoria muito significativa, certo é que “sendo a coroide o tecido mais vascularizado do organismo, um toque ou rasgão num vaso pode levar ao sangramento e à perda de viabilidade do olho”.
É neste desafio técnico acrescido que o oftalmologista encontra a explicação para justificar que a cirurgia nunca houvesse sido realizada em Portugal e que poucos centros tivessem avançado para ela a nível internacional.
Partindo-se para a cirurgia, é necessário “abrir a esclera até expor a coroide e recolar o corpo ciliar”. A melhoria é evidente: “O rapaz voltou a ver 100% com umas tensões fantásticas (de 12-14 mmHg), no espaço de semanas. A partir do momento em que suturámos o ponto de fuga, temos as espessuras normais de volta, como se fosse um balão que estava enrugado e voltou ao seu tamanho normal.”
Luís Abegão Pinto: “Nesta cirurgia, fazemos de propósito para expor e suturar uma estrutura em que, durante anos, tivemos medo de tocar"
Prémio - Cirurgias inovadoras
No caso da ciclopexia direta após trauma ocular, mereceu um prémio na categoria de “Cirurgias Inovadoras”, entregue no evento SPO (Sociedade Portuguesa de Oftalmologia) Verão 2021.
No entanto, o oftalmologista sublinha que a inovação “não se prende com a descrição da cirurgia ou dos materiais usados, porque ambos já existem há várias décadas, mas sim com a realização do diagnóstico e a proatividade de avançar para o procedimento, ao invés de puramente aceitar aquela fatalidade”.
Foco em garantir "uma hipotensão controlada"
Tendo participado numa das ciclopexias diretas realizadas, Lina Guerreiro, anestesiologista do Serviço, nota que “a particularidade desta cirurgia se prende com a preocupação de procurar manter, durante todo o procedimento, uma hipotensão controlada. Isto é, uma tensão arterial um pouco mais baixa do que o habitual, para minimizar as perdas hemáticas do campo cirúrgico”. Sendo administrada sempre anestesia geral, consoante a situação, esta poderá ser balanceada ou endovenosa.
Ao longo de cerca de duas horas, os doentes são submetidos a cirurgia, com uma equipa composta por dois oftalmologistas, um anestesiologista e dois enfermeiros.
Lina Guerreiro e Ana Almeida
“A prevenção é essencial"
Ana Almeida, enfermeira coordenadora do Bloco Operatório do Serviço de Oftalmologia, ainda não teve oportunidade de participar em nenhuma das ciclopexias diretas após trauma ocular, no entanto, explica à Just News que a presença da Enfermagem no Bloco Operatório se estende às funções inerentes ao enfermeiro circulante e ao enfermeiro de anestesia, que são transversais a qualquer cirurgia, segundo as orientações emanadas pela Ordem dos Enfermeiros.
Quanto aos episódios de traumatismo ocular, a enfermeira adianta que são muitos os que levam os doentes à Urgência, no decorrer de situações várias, para extração de corpos estranhos intraoculares, ”como o ato de cortar a relva sem óculos de proteção. “A prevenção é essencial”, alerta.
Após ter trabalhado largos anos em serviços de Cirurgia Geral, a enfermeira destaca que “a Oftalmologia é um mundo só conhecido por quem nele trabalha”.
"Trata-se de uma cirurgia rara e desafiante"
Walter Rodrigues, diretor do Serviço de Oftalmologia, está bem ciente da importância da ciclopexia direta após trauma ocular, uma cirurgia que define como “ainda pouco frequente, equacionada no contexto de olho hipotónico, que apresenta uma pressão ocular baixa e uma certa desinserção do corpo ciliar”.
Walter Rodrigues
Na sua ótica, “o diagnóstico atempado e a realização da cirurgia, em que se procede à sutura da desinserção, são a chave para normalizar a pressão ocular e salvar a visão do olho”. No entanto, sendo esta uma cirurgia rara, inclusivamente a nível internacional, destaca que, muitas vezes, a sua realização de forma desatempada, ou até mesmo a não realização, culminam na perda do órgão.
Reconhecendo que o procedimento “exige determinada técnica e certo treino”, realça que o Serviço que dirige está disponível para receber doentes referenciados de outros hospitais. “Efetivamente, trata-se de uma cirurgia rara e desafiante, pelo que são ainda poucos os cirurgiões que têm a capacidade, a prática e o à vontade necessários para a realizar”, distingue.
A reportagem completa pode ser lida na edição de janeiro/fevereiro do jornal Hospital Público.