«Com a consulta aberta conseguimos encurtar o tempo de resposta aos doentes autoimunes»

"Pelo menos 50% dos doentes que chegam à minha consulta submeteram-se a múltiplos exames e vêm hipermedicados", afirma Carlos Carneiro, coordenador do Departamento de Doenças Autoimunes do Grupo HPA Saúde.

E acrescenta: "Já gastaram muito dinheiro em meios complementares de diagnóstico, terapêuticas e outras opiniões, mas, apesar de terem um conjunto de sinais e sintomas que estão a ser tratados, não têm o essencial, que é o diagnóstico."

Em entrevista à Just News, o médico dá a conhecer um pouco do trabalho e da cultura que tem desenvolvido no Grupo HPA Saúde, salientando que "a abordagem da doença autoimune deve abranger várias áreas. É o que fazemos aqui!". Na sua opinião, não há qualquer dúvida: "Se houver um trabalho em bloco o doente sente que não está perdido, o que é muito importante."

Nesse processo, e porque "há muita coisa que acontece entre os três ou seis meses de consulta e que pode necessitar de uma resposta imediata", Carlos Carneiro esclarece: "A nossa atuação permite evitar que o doente recorra ao Serviço de Urgência e, de facto, provavelmente, não haverá outro profissional que o conheça melhor do que quem o segue e que já conhece a doença e as suas vicissitudes."


Just News (JN) – Como surgiu o seu interesse pela abordagem das doenças autoimunes?


Carlos Carneiro (CC) – O meu interesse foi confirmado ainda durante o curso, quando comecei a ouvir falar de doenças autoimunes, associadas à busca pelo desconhecido, pela perceção do diagnóstico e de que um único sintoma pode ter diferentes apresentações.

Há uma sensação de puzzle, em que conseguimos fazer uma figura de diferentes formas, usando vários métodos, mas certo é que a figura está sempre lá. O gosto pela área acaba por materializar-se ao longo do meu percurso formativo. A minha orientadora de formação estava ligada às doenças autoimunes, o que me permitiu aprofundar conhecimentos e aplicá-los durante o meu percurso profissional.

No Hospital Particular do Algarve, comecei a prestar apoio tanto a nível de ambulatório, fazendo consultas de doenças autoimunes e de Medicina Interna, como de
internamento do Serviço de MI, e também a prestar apoio à Unidade de Cuidados Intensivos, algo que já fazia no Hospital do Barlavento Algarvio.

JN – Como se deu a sua passagem para o Grupo Hospital Particular do Algarve – Saúde?

CC – Juntamente com um colega, desafiámo-nos a fazer algo diferente, porque queríamos fazer uma rutura com o que era suposto, que era mantermos simplesmente o nosso percurso como internistas. Na altura, havia muito poucos colegas a afastar-se do sistema público para se dedicarem a uma entidade privada a tempo inteiro -- eu terei sido mesmo dos primeiros – e aquilo que me movia era mudar o paradigma da Saúde.

Se nós apostarmos nas pessoas – o elemento mais importante – e nos projetos, seja no setor público, privado ou social, tudo o resto vem por acréscimo.

Na altura, recém-especialista, a minha ambição era conseguir que o Hospital Particular do Algarve funcionasse como tal, deixando de atuar como uma clínica, e poder integrar um serviço de Medicina Interna, com todas as estruturas inerentes, como consultas especializadas, como a de diabetes ou de doenças autoimunes.

Neste momento, dispomos de uma Unidade de Cuidados Intensivos com profissionais qualificados, temos médicos presentes 24 horas e equipas de emergência e de reanimação intra-hospitalares como em qualquer hospital central ou distrital. Face a todas as dificuldades inerentes à captação de elementos na região Sul do país, conseguimos garantir um tipo de resposta que até então não tínhamos.

JN – Entretanto, conseguiu criar um Departamento de Doenças Autoimunes no Grupo HPA Saúde...

CC – Sim, porque a abordagem da doença autoimune deve abranger várias áreas, além da médica. Mais do que a possibilidade de determinadas patologias terem a envolvência de outros órgãos, carecem da intervenção de diferentes profissionais, nas áreas da Nutrição, Fisioterapia, Psicologia e Enfermagem, pelo que é de extrema importância haver um departamento capaz de as englobar. Apesar de esta dinâmica já existir há alguns anos, o conceito foi formalizado em 2022.

É preciso haver mais do que uma consulta e este conjunto deve levar a que o doente seja o gestor da sua doença. Os profissionais devem gravitar à volta do mesmo, porque todos são importantes e necessários, mas há momentos que podem levar à ativação da doença e a que determinada área possa carecer de uma maior intervenção. Mas se houver um trabalho em bloco o doente sente que não está perdido, o que é muito importante.

Mais de metade dos doentes que vejo enfrentam o desafio de não serem compreendidos por quem os rodeia e até por eles próprios, pois o facto de a maior parte dos sintomas não serem visíveis leva-os a questionar muitas vezes o que se está a passar com eles.



JN – Qual é o nível de afluência que o Departamento tem registado?

CC – Neste momento, acompanhamos cerca de 10 mil doentes e fazemos aproximadamente 700 consultas por mês. Diariamente, cerca de 60% correspondem a primeiras consultas. Além de mim, há mais dois internistas a fazer consulta. No meu caso, tenho a possibilidade de fazer atividade seis dias por semana, o que leva a que a maioria dos doentes seja seguida por mim.

Há muitos doentes que chegam à procura de um diagnóstico e outros que vêm pela falta de resposta que existe no SNS. O mais importante é que todo o doente saiba que entre segunda-feira e sábado há alguém que o pode receber, independentemente de ter ou não consulta agendada, o que, no meu entender, representa uma mudança de paradigma. Só desta forma conseguimos captar outros profissionais.


JN – Esse tipo de resposta justifica-se?

CC – A doença autoimune tem muitas vezes como trigger uma situação de stress ou ansiedade, um contexto de pós-gravidez ou perto de uma menopausa, portanto, algo súbito que interfira com o sistema imunitário ou com alterações hormonais, ou que até surja na sequência de um conjunto de infeções de repetição. O facto de estas alterações, já por si desafiantes, levarem à ativação da doença acelera a resposta do doente a todas essas solicitações.

Devido à grande afluência que temos nos serviços de Urgência, trabalhámos a montante, criámos condições para os Cuidados de Saúde Primários, tentámos desburocratizar tudo o que é envolvência aos mesmos, mas também é importante fazer com que as consultas de especialidade tenham uma resposta e que essa resposta não se limite ao dia da consulta. Há muita coisa que acontece entre os três ou seis meses de consulta e que pode necessitar de uma resposta imediata.

A nossa atuação permite evitar que o doente recorra ao Serviço de Urgência e, de facto, provavelmente, não haverá outro profissional que o conheça melhor do que quem o segue e que já conhece a doença e as suas vicissitudes.

Com esta pré-triagem, possibilitada pela consulta de enfermagem, e a resposta médica, conseguimos aumentar o nível de acesso e encurtar o tempo de resposta dados aos doentes. Desta forma, estamos sempre presentes e este conceito tem tido uma excelente resposta por parte dos nossos doentes.

JN – Na prática, como funciona a consulta aberta?

CC – Temos um período extra no final do dia para situações urgentes que necessitem de ser vistas nesse mesmo dia. Normalmente, o doente contacta diretamente comigo ou com a enfermeira e nós temos definidos três níveis de resposta. Tratando-se de uma situação urgente, é assegurada uma resposta imediata, com a referenciação para o Serviço de Urgência ou o encaminhamento para o Internamento.

Existe também uma resposta intermédia, em que, face a uma situação não tão emergente, o doente é avaliado por mim no próprio dia e aí defino se deve ser reavaliado 48 horas depois ou encaminhado para outro tipo de serviço.

Perante uma forma mais ligeira, antecipamos a consulta, de maneira a que o doente seja visto no prazo de oito dias. Existe um conjunto de scores que nos levam a aplicar estes métodos.

Há muitos doentes que chegam à procura de um diagnóstico e outros que vêm pela falta de resposta que existe no SNS. O mais importante é que todo o doente saiba que entre segunda-feira e sábado há alguém que o pode receber, independentemente de ter ou não consulta agendada, o que, no meu entender, representa uma mudança de paradigma.

JN – Foi o presidente do IX Congresso Nacional de Autoimunidade, que se realizou em Albufeira, em junho. Já tem alguma experiência em organizar reuniões científicas, pois foi um dos fundadores da Associação Médica do Algarve (AMALG)…

CC – Sim, eu e o Dr. Nuno Fernandes, um dos médicos que também integra o Departamento de Doenças Autoimunes do Hospital Particular do Algarve, criámos a AMALG, mas a reunião nasceu ainda antes, quando comecei a exercer funções no Hospital Particular do Algarve.


O meu foco sempre se centrou nos doentes e na promoção de literacia em Saúde. Entendo que, para haver a máxima transmissão de informação e sermos competentes, precisamos de partilhar saberes e experiências entre as várias unidades.

Nesse sentido, organizei o 1.º Encontro de Autoimunidade do Algarve, em 2016, no HPA, já lá vão sete anos. Para a edição seguinte, já convidei profissionais a nível nacional, e a reunião começou a ter o seu próprio espaço. Tem sido realizada anualmente, na última semana de outubro. Este ano, estamos a organizar o 6.º Encontro.

A AMALG surgiu mais tarde, em 2019, para tentarmos fazer formações paralelas dirigidas a outros profissionais, através de cursos, por exemplo, e para nos dirigirmos aos doentes, através da AICARE - Autoimmunity Care Academy, que pretende apoiar quem tem doenças autoimunes, através de palestras, sessões e workshops.

Para assinalar o regresso deste projeto, após uma interrupção motivada pela pandemia, estamos a levar a academia a diferentes cidades algarvias, a cada dois meses.

JN – Considera que os interesses que nutre pelas DAI, pelos cuidados intensivos e pela emergência têm alguma relação entre si?

CC – Sim, acho que há uma interceção entre as minhas três áreas de eleição. Apesar de todas serem diferentes, têm em comum a forma emergente de procurar saber o que está em causa, isto é, fazer um diagnóstico precoce. Por outro lado, há a questão do tratamento e de tentar mudar o paradigma de algo que até então teria um certo percurso, e ainda partilham uma abordagem multissistémica. De facto, enquanto algumas doenças autoimunes são mais órgãos alvo, outras têm envolvência de outros órgãos.

JN – De que forma se pode contrariar a tendência e atrair profissionais de saúde para o Algarve?


CC – A dificuldade de captação de profissionais é um dos principais problemas na região e a solução prende-se, desde logo, com a mudança do mindset das pessoas, mostrando abertura a trabalhar em hospitais periféricos, em detrimento de centrais.

Todos temos direito à saúde, mas tal coloca-nos desafios e responsabilidades, e se queremos que haja uma distribuição igualitária por todo o território português temos de criar condições para que tal aconteça. É verdade que são dados benefícios para a fixação dos profissionais, mas é preciso ir mais além, pois, não se trata apenas de questões económicas.

Colocam-se também questões de mentalidade e de receção dos serviços, pois, é necessário que os profissionais tenham como objetivo primário ser melhores e acreditarem nos projetos.

Se as administrações hospitalares acreditarem no conjunto de profissionais que têm sob a sua responsabilidade, e se esses investirem nos projetos e conseguirem mudar o paradigma em várias áreas, vão ser referências no Algarve, em Bragança e na Guarda, como em Lisboa. Não há outra forma de captar os profissionais sem ser apostar nas pessoas e nos projetos de forma consolidada.

É preciso criar uma forma de acesso para que eles possam ser bem ressarcidos, do ponto de vista económico e pelos projetos que estão a dinamizar, pois, a criação de áreas de referência vai facilmente refletir-se em pontos de fixação, dado que haverá outros profissionais a querer associar-se a elas.



A entrevista completa a Carlos Carneiro foi publicada no Jornal do IX Congresso Nacional de Autoimunidade.

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