Neuropsicofármacos: Já existe a Nomenclatura baseada na Neurociência em português europeu
“É errónea a forma como, hoje em dia, ainda são classificados os medicamentos, com base na sua indicação clássica, quando demonstram eficácia clínica noutras doenças”, refere Afonso Gouveia, um dos elementos do Comité Local de Linguagem para a adaptação da Nomenclatura baseada na Neurociência ao idioma e contexto português europeu.
Foi esta convicção de Afonso Gouveia, interno do 5.º ano de Psiquiatria da ULS do Baixo Alentejo, que o motivou a aceitar o repto lançado por Joseph Zohar, antigo presidente do Colégio Europeu de Neuropsicofarmacologia (ECNP), no seu 34.º Congresso Anual, em 2021, para que fosse criada uma edição euro-portuguesa da Nomenclatura baseada na Neurociência (NbN).
Afonso Gouveia
“A NbN constitui uma forma de classificar e designar neuropsicofármacos que se orienta pelas suas propriedades farmacológicas e não pelas indicações clássicas, propondo, por exemplo, o uso do termo ‘bloqueador da dopamina’ em vez de ‘antipsicótico’”, explica o médico, inquirindo de seguida: “Quantas vezes os doentes perguntam porque estão medicados com um antipsicótico se não estão psicóticos, ou com um antidepressivo se sofrem de ansiedade?”
Do seu ponto de vista, “manter as classificações clássicas dos medicamentos é injusto e redutor face à investigação clínica desenvolvida, e acarreta vários problemas, porque gera alguma desconfiança não só por parte dos doentes e familiares, mas também de outros profissionais que nem sempre conhecem esta realidade multivalente da psicofarmacologia, levando a crer que os fármacos estão a ser indevidamente utilizados”.
Paralelamente, coloca-se a questão do “estigma associado, sobretudo aos chamados ‘antipsicóticos’, que, em doses baixas, podem ter várias outras indicações e utilidades, como potenciar um medicamento para a depressão”. Nesse sentido, defende: “Os rótulos que damos aos medicamentos têm de ser atualizados ou evitados se não representam a larga utilidade que têm.”
A nomenclatura convencional “estava associada a uma pior adesão terapêutica e a um maior estigma, e não refletia o conhecimento atual de neurociência”, o que levou cinco organizações internacionais de neuropsicofarmacologia a constituírem uma task force que propunha o uso de uma nova nomenclatura concordante com o conhecimento farmacológico e terapêutico até agora estabelecido. Entretanto, a NbN foi já adotada em vários manuais de referência e revistas científicas.
“Uma prescrição mais mecanicista e baseada na evidência”
No fundo, “a NbN vem acompanhar movimentos semelhantes noutras áreas da medicina, contrariar ideias instaladas de que os neuropsicofármacos servem apenas para um propósito, reduzir o estigma associado a certos grupos de fármacos, e prevenir mal-entendidos ou algumas formas de falta de adesão devido à incongruência entre o agrupamento clássico e o propósito para o qual é prescrito. Consegue ainda auxiliar uma prescrição mais mecanicista e baseada na evidência e conhecimento que têm vindo a ser acumulados nos últimos 60 anos”.
O processo de tradução e adaptação foi desenvolvido por Afonso Gouveia e ainda por dois médicos internos de Psiquiatria do 4.º ano – Filipa Santos Martins, da ULS de São João, e Pedro Trindade, da ULS de Lisboa Ocidental, ao longo dos dois últimos anos, em articulação com a Coordenação Central da NbN.
Filipa Santos Martins, Afonso Gouveia e Pedro Trindade
O resultado final foi lançado formalmente no 36.º Congresso do ECNP, em outubro de 2023, em Barcelona, e, desde então, este grupo de internos tem estado empenhado na promoção, difusão e implementação da NbN em Portugal, não só por psiquiatras, mas também por outros especialistas, estudantes pré-graduados e profissionais de saúde, servindo “um valioso propósito formativo e de consulta”.
Para tal, têm contado com o apoio de um conjunto de figuras de relevo da Psiquiatria portuguesa, concretamente Albino Oliveira-Maia, Maria João Heitor, Gustavo Jesus, João M. Bessa, Luís Câmara Pestana, Luís Afonso Fernandes e Pedro Morgado. Em novembro, a NbN foi ainda protagonista de uma sessão interativa no XVII Congresso Nacional de Psiquiatria, em Albufeira.
Este instrumento está agora acessível em português, de forma gratuita, através da app NbN3.
"É um primeiro e fundamental passo na adoção dessa terminologia também fora da medicina"
Para Albino Oliveira-Maia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, "apesar de o NbN existir já em língua inglesa, e a enorme maioria dos médicos prescritores dominarem bem a língua inglesa, este passo da criação de um versão em Português Europeu é importante não só por questões linguísticas, mas também por questões regulamentares e de cultura, que são inevitavelmente muito locais".
Na sua opinião, este instrumento, para além de apoiar os médicos na "utilização de uma denominação mais neurobiológica na tomada de decisão sobre a prescrição de medicação", é também um "primeiro e fundamental passo na adoção dessa terminologia também fora da medicina, e na fácil identificação dos medicamentos que estão, ou não, disponíveis para prescrição em Portugal".
Albino Oliveira-Maia
E acrescenta: "Por outro lado, e numa nota muito pessoal, não pode deixar de orgulhar a Psiquiatria Portuguesa que este trabalho tenha sido liderado por um conjunto de médicos internos, o que constitui um excelente sinal de vitalidade da especialidade e da formação em Psiquiatria."
"Constitui um novo paradigma de classificação e mapeamento"
Também Maria João Heitor, presidente cessante da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, partilha do mesmo entusiasmo, afirmando que "a NbN é mais do que apenas uma nomenclatura diferente para neuropsicofármacos".
De acordo com a médica, constitui "um novo paradigma de classificação e mapeamento, ao mudar o foco dos sintomas e da doença, com base em indicações clínicas, para uma lógica direcionada para o mecanismo neurobiológico de ação do fármaco e a evidência científica em que assenta. É um passo que reflete o conhecimento crescente, e esperamos que possa ser muito útil para a prática clínica em Psiquiatria, à semelhança do que se verifica noutras especialidades médicas."
E, perspetivando os próximos tempos, manifesta estar convicta de que esta ferramenta "vai ter um papel na redução do estigma, junto das pessoas doentes, das famílias e da sociedade civil, através de uma forma de divulgação inovadora em websites, apps e nas redes sociais".
Faz ainda questão de destacar o empenho dos autores e de todos os envolvidos na obra: "Reforço e valorizo o dinamismo de um grupo de jovens internos, em articulação com especialistas e com a Coordenação Central da NbN."
Maria João Heitor
O Comité Local de Linguagem convida os leitores a seguirem esta iniciativa através do seu website e das redes sociais (fB, LinkedIN, Instagram e X/Twitter) e convida aqueles que queiram associar-se à disseminação do projeto, através de apresentações em serviços, cuidados de saúde primários ou outros eventos formativos, a entrar em contacto através do nbnportugal@gmail.com.